A) A estrutura da questão do ser.
O tratado O Ser e o Tempo assenta inteiramente numa única questão fundamental, a do sentido do ser. «A elaboração concreta da questão do sentido do ser», escreve Heidegger no princípio desta obra, «é o objeto do presente trabalho. O seu fim provisório é o de fornecer uma interpretação do tempo como horizonte de toda a compreensão do ser». A questão do ser caiu hoje em dia no esquecimento. Esta questão inspirou as investigações de Platão e de Aristóteles, mas extinguiu-se com eles, pelo menos como tema explícito de uma verdadeira investigação. Os filósofos que lhes sucederam não fizeram mais que retomar, sem mais interrogações, as determinações ontológicas que estes dois pensadores tinham descoberto. Na verdade, muitos preconceitos proporcionaram a indiferença a respeito do problema do ser, e Heidegger denuncia os três principais. O primeiro é o da absoluta generalidade do ser: o ser é o «conceito» mais geral, e está já pré-compreendido em toda a apreensão do ente. O segundo é o da sua não definibilidade que se deduz da sua absoluta generalidade, se é verdade que toda a definição se deve fazer pelo gênero próximo e pela diferença específica. O ser, sendo o que há de mais geral, não pode estar subsumido sob um gênero mais vasto do qual ele seja uma das espécies. O terceiro é o da sua evidência que dispensa, digamos, que se interrogue mais sobre este assunto. Estes preconceitos parecem condenar, à partida, toda a investigação ontológica, e tornam-na inútil e vã. Eles não fazem mais que traduzir, na realidade, o embaraço onde nos encontramos desde que tentamos dizer o que é o próprio ser. Longe de ser o que há de mais evidente, o ser é, pelo contrário, o que existe de mais enigmático e que merece, por conseguinte, ser interrogado em primeiro lugar.
Antes e a fim de responder à questão do sentido do ser, Heidegger começa por analisar a estrutura. Nesta questão, podemos, como em toda a questão, discernir três momentos: há, desde já, o que é perguntado (das Erfragte), isto é, o que orienta e motiva a investigação, na ocorrência o sentido do próprio ser. Há, de seguida, o que é questionado (das Gefragte), ou seja, aquilo sobre que, falando com propriedade, se faz a investigação, na ocorrência do ser. Há, por fim, o que é interrogado (das Befragte), quer dizer, o que constitui o ponto de partida da investigação e fornece uma via de acesso ao que é propriamente inquirido, que neste caso é o ente, pois que o ser só se revela a partir do ente. O ente, porém, recobre várias coisas, pois tudo o que é dele faz parte. Convém então determinar com precisão qual é o ente que deve servir de fio condutor à questão do ser. A escolha de Heidegger assenta no ente que põe a questão do ser, quer dizer sobre o ente que nós próprios somos, e que ele designa sob o nome de Dasein (o ser-aí). O ser-aí goza de um privilégio insigne, que o designa muito especialmente por ser o objeto interrogado em primeiro lugar e antes de qualquer outro. O ser humano não é um ente qualquer, mas possui a caraterística fundamental de estar sempre já em relação com o ser. Nós movemo-nos sempre no seio de uma certa compreensão do ser, nós sabemos o que ele quer dizer, mesmo se somos incapazes de explicitar esse saber, geralmente vago e confuso. Juntemos que essa compreensão do ser não é algo que nos caiba ou que nos seja retirado, ela é uma determinação constitutiva do nosso ser. «A compreensão do ser», diz Heidegger, «é ela mesma uma determinação do ser do ser-aí». O ser-aí é um ser ontológico, o que não significa, bem entendido, que ele tenha já elaborado uma ontologia, mas que, compreendendo o ser, ele é a condição de possibilidade de todas as ontologias. O esforço de Heidegger em O Ser e o Tempo é então o seguinte: manifestar o sentido do ser, analisando antes de tudo o ser que compreende o ser, isto é, o ente que nós somos (o ser-aí).
Heidegger chama à análise preliminar do ser-aí «a analítica existenciária». O ser-aí possui, com efeito, um modo de ser original que o distingue de todos os outros entes. De forma diferente dos seres inanimados, das coisas materiais, ou mesmo dos outros seres vivos que estão sempre «indiferentes» ao seu ser, o ser-aí reporta-se sempre ao ser que é o seu. Como diz Heidegger, vai sempre, neste ser, o seu ser. Noutros termos, o ser-aí não subsiste simplesmente, mas existe. E o que Heidegger exprime numa fórmula célebre: «’A essência’ do ser-aí reside na sua existência.» A análise existenciária do ser-aí não deve ser confundida com a descrição das escolhas existenciais e ônticas (lembremos que para Heidegger «ôntico» designa tudo o que se refere ao ente, e «ontológico» tudo o que se refere ao ser) que guiam o ser-aí na sua vida concreta. Ela tem um alcance ontológico, e procura trazer à luz a estrutura essencial da existência, quer dizer os diferentes modos de ser do ser-aí, a que Heidegger chama os existenciários para os opor às categorias ontológicas tradicionais. A analítica existenciária fornece o fio condutor procurado para a elaboração da questão do ser. Enquanto exploração da estrutura ontológica do ente que compreende o ser, ela condiciona a possibilidade de toda a investigação ontológica, e é por isto que Heidegger lhe chama ontologia fundamental. «A ontologia fundamental», diz Heidegger, «da qual todas as outras só podem derivar, deve ser procurada na analítica existenciária do ser-aí».
A estrutura da questão do ser dirige o plano do tratado O Ser e o Tempo. Este compreende, ou pelo menos devia compreender, segundo o projeto inicial anunciado no princípio da obra, duas partes. A primeira parte intitula-se «A interpretação do ser-aí em direção da temporalidade e da explanação do tempo como horizonte transcendental da questão do ser». O seu fim é o de manifestar a significação temporal do ser. Esta parte articula-se ela própria em três momentos ou seções: na primeira seção: «A análise fundamental e preparatória do ser-aí», Heidegger analisará o ser-aí tal como ele é em primeiro lugar e mais habitualmente, ou seja, na sua banalidade quotidiana e ordinária. Na segunda seção: «Ser-aí e temporalidade», Heidegger inclinar-se-á sobre o ser-aí autenticamente existente e porá em evidência o sentido do seu ser como temporalidade. Com a segunda seção, a analítica existenciária propriamente dita, termina. Ela fornece a Heidegger o solo requerido para responder à questão do ser, o que constitui, ou antes devia constituir, o objeto da terceira seção, «Tempo e Ser», que nunca será publicada. Nessa seção, Heidegger devia mostrar que «aquilo a partir do qual o ser-aí pode implicitamente compreender e explicitar o ser é o tempo». Para que isso se faça «será preciso estabelecer», diz-nos ele, «uma explanação autêntica do tempo como horizonte da compreensão do ser a partir da temporalidade como ser de um ser-aí que compreende o ser».
A descoberta do sentido temporal do ser, por muito nova que seja, só tem valor, porém, porque ela é «suficientemente antiga para nos ensinar as possibilidades abertas pelos ‘Antigos’». Esta é a razão pela qual Heidegger julga necessário completar a primeira parte de O Ser e o Tempo com uma interpretação da história da Ontologia à luz da problemática da temporalidade (segunda parte do tratado). Não podendo abarcar o conjunto desta história, Heidegger limitar-se-á ao exame de três momentos particularmente significativos: a doutrina kantiana do esquematismo, a doutrina cartesiana do cogito sum como res cogitans e o tratado aristotélico sobre o tempo como índice dos limites da ontologia antiga. Estes três momentos da história da ontologia deviam ser estudados nas três seções que deveriam formar a segunda parte de O Ser e o Tempo, seções que, também elas, nunca serão publicadas.