A filosofia da vida compreende-se como uma filosofia da vida no sentido do genitivo subjetivo: ela não filosofa sobre a vida, mas é a própria vida que filosofa nela. Como filosofia, ela quer ser um órgão dessa vida; quer intensificá-la, abrir-lhe novas formas e figuras. Não quer apenas descobrir quais valores valem, mas é suficientemente imodesta para querer criar valores novos, filosofia da vida é a variante vitalista do pragmatismo. Ela não indaga pela utilidade de um conhecimento, mas pela sua potência criadora. Para a filosofia da vida, a vida é mais rica do que qualquer teoria. Por isso ela repele o reducionismo biológico: lá o espírito é rebaixado ao nível da vida, mas na filosofia da vida o espírito deve ser alçado até a vida.
Os grandes protagonistas da filosofia da vida antes de 1914 foram Friedrich Nietzsche, Wilhelm Dilthey, Henri Bergson e Max Scheler.
Nietzsche igualara “vida” com potência criativa e nesse sentido a chamara de “vontade de poder”. A vida deseja a si mesma, quer se configurar. Consciência está numa relação ambivalente com esse princípio de autoformação do vivo. Pode atuar como fator de inibição ou intensificação. Consciência pode produzir medos, escrúpulos morais, resignação – na consciência pode-se pois romper o ímpeto vital. Mas a consciência também pode se colocar a serviço da vida: pode estabelecer valores que animem a vida a jogar livremente, a estimular refinamentos e sublimação. Mas seja como for que a consciência age, permanece um órgão desta vida, por isso os destinos que a consciência proporciona à vida são ao mesmo tempo destinos que a vida prepara para si mesma. Uma vez ela se intensifica – pela consciência; outra vez ela se destrói – pela consciência. Se a consciência age numa direção ou noutra, isso não é decidido por um processo vital inconsciente mas pela vontade consciente, portanto pela liberdade da consciência diante da vida. A filosofia da vida de Nietzsche arranca a “vida” da camisa-de-força determinista do fim do século 19 e lhe devolve sua liberdade própria. É a liberdade do artista diante de sua obra. “Quero ser o autor da minha vida”, anuncia Nietzsche, e sabe-se que consequências isso teve para o conceito de verdade. Não existe verdade no sentido objetivo. Verdade é o modo de ilusão que serve à vida. Esse é o pragmatismo de Nietzsche, mas que se relaciona com um conceito dionisíaco de vida diferente do anglo-saxão. Nietzsche despreza o dogma darwinista da “adaptação” e “seleção” como lei de evolução da vida. Para ele isso são projeções de uma moral utilitarista. Assim o homem medíocre imagina uma natureza na qual presumivelmente também a adaptação é recompensada com uma boa carreira. Para Nietzsche, “natureza” é o mundo-criança de Heráclito, que brinca. A natureza forma figuras e as quebra outra vez, num incessante processo criativo no qual triunfa o poderoso vital e não aquele que se adapta. Sobreviver não é um triunfo. A vida só triunfa no excesso, no esbanjamento, na vida vivida, até se esgotar.
A filosofia da vida de Nietzsche é ativista e possuída pela arte. O seu Vontade de Poder no começo não funcionou como visão política, mas estética. Ela devolveu à arte uma forte consciência de si mesma. Sob a pressão do ideal científico, ela perdera essa consciência de si, curvando-se ao dogma da imitação. Quem seguia Nietzsche podia dizer: se arte e realidade não coincidem, pior para a realidade!
As importantes correntes artísticas do começo do século -simbolismo, art nouveau, expressionismo – foram todas inspiradas em Nietzsche. A Vontade de Poder estética recebe vários nomes. Na Viena de Freud, onde o inconsciente ainda está em vigor, os neuróticos são os verdadeiramente vitais: “Só quando o neurótico for totalmente liberado e o ser humano, especialmente o artista, puder se entregar inteiramente aos seus nervos sem consideração com o sensato e o sensual, a alegria perdida volta à arte…” (Hermann Bahr, 1891). Os expressionistas exigem o “renascimento da sociedade da reunião de todos os meios e forças da arte” (Hugo Ball); também no círculo de Stefan George e entre os simbolistas acredita-se em um “renascer” público e social saído do espírito da arte soberana. Franz Werfel anuncia a “entronação do coração”. As fantasias onipotentes da arte e dos artistas têm a sua grande hora. O espírito da filosofia da vida libertou novamente as artes do serviço do princípio da realidade. Atrevem-se outra vez a ter visões com as quais protestam contra a realidade, convencidos de que esta também haverá de mudar. “Vida, protesto, transformação” – é a trindade expressionista.
A filosofia da vida de Nietzsche foi responsável pelo “viver até o fim” (Ausleben), a de Dilthey pelo “vivenciar” (Erleben). Dilthey não se interessava pela biologia, mas queria saber, pela história do espírito, o que afinal era o homem e apenas encontrou obras e figuras isoladas, uma abundância de perspectivas em que a vida do espírito mostra toda a sua riqueza. A vida de Dilthey era o universo dos livros, onde há sentenças que por vezes produzem um significado, mas que no total não coincidem em um significado abrangente. A vida do espírito produz uma quantidade de formas que pode assumir a aparência de um ossário se não soubermos fazer voltar à vida o espírito enrijecido nas obras objetivas da cultura. Isso acontece pelo compreender (Verstehen). Compreender é a maneira pela qual o espírito experimenta a objetivação do espírito alheio, como “torna fluido” o que estava solidificado. Dilthey emprega essa expressão e Heidegger a assume dele, quando, como já se mencionou aqui, fala na “diluição” da escolástica para combater em favor do ideal de vida católico. O compreender recupera a vida passada. Compreender é repetir. A possibilidade da vivência repetidora é um triunfo sobre a transitoriedade do tempo. Mas as obras que nascem no tempo não permitem que se fixe objetiva e compromissadamente o seu conteúdo. Cada ato de compreender está ele próprio ligado ao seu momento no tempo. E assim somos constantemente envolvidos pelo tempo que corre, que produz sempre o novo e sempre o único – pontos-de-vista, perspectivas, visões, concepções de mundo numa sequência incessante. “Onde estão os meios para superar a anarquia das convicções que ameaça irromper?”, perguntara Dilthey. Anarquia ainda era algo sinistro para aquele sensível erudito alemão do tempo dos fundadores. Por isso ele acreditava que a vida do espírito se insere em uma ordem secreta e não saberia dizer de que maneira – mas em todo caso queria ser jardineiro nesse jardim do humano. Vida tinha um som familiar em Dilthey, não-demoníaco como em Nietzsche. “Vida é o fato básico, que tem de formar o ponto de irrupção da filosofia. É o conhecido de dentro, depois do qual não se pode mais voltar. Vida não pode ser posta diante do tribunal da razão.”
Nietzsche queria fazer filosofia da sua vida, Dilthey quer fazer voltar à vida as obras do espírito. Um faz filosofia da vida como aventura existencial, outro como vivência cultural.
Nietzsche e Dilthey ainda vinham do século 19. Mas o gênio da filosofia da vida no século 20 foi Henri Bergson. Ele tentou configurar a filosofia da vida como sistema. Em 1912 apareceu em tradução alemã a sua obra principal, Evolução Criadora. Teve imediatamente um sucesso sem igual, também com o público. Em sua Tentativa de uma Filosofia da Vida, de 1912, Max Scheler escreve: “O nome Bergson retumba tão alto atualmente no mundo da cultura, que os donos de ouvidos mais finos sem dúvida hão de indagar se deveriam ler um tal filósofo”. Devemos lê-lo, diz Max Scheler, pois na filosofia de Bergson manifesta-se uma “postura do homem para com o mundo e a alma” inteiramente nova. “Essa filosofia tem para com o mundo o gesto da mão aberta que indica, e do olhar bem aberto, grande e livre. Não é o olhar crítico, que pisca, que um Descartes … lança sobre as coisas; não é o olhar de Kant, do qual cai sobre as coisas o raio do espírito tão estranho como se viesse de outro mundo, tão imperioso que as perfura. Muito antes rodeia-o até a sua raiz espiritual a torrente do ser, como um elemento benfazejo… como algo natural e já como a própria torrente-do-ser.”
Bergson, como Schopenhauer antes dele e de maneira semelhante, descobre duas fontes de conhecimento da vida. Uma é a razão, outra a intuição (em Schopenhauer: a experiência interior da vontade). Razão é aquela capacidade que Kant analisou com precisão. Bergson liga-se a ela. Espaço, tempo, causalidade, expansão – são categorias dessa razão. Mas Bergson agora modifica a perspectiva: essa razão é encarada do ponto-de-vista biológico evolucionista. Assim aparece como produto dessa evolução, como órgão para orientar a vida no mundo e dirigir as ações. Obviamente ele se afirmou, e é expressão de uma “adaptação cada vez mais maleável do ser vivo (Lebenswesen) às condições de vida existentes”.
Portanto a razão é um sistema que filtra a plenitude e multiplicidade afluentes do ser e do devir sob pontos-de-vista da sobrevivência prática (analogamente, em Schopenhauer, a razão é um instrumento da vontade).
Até aqui Bergson é um biólogo pragmático. Mas agora o seu passo decisivo – com uma reflexão simples: já que podemos analisar a razão em seus limites, sempre estamos além dela, ou não poderíamos descobrir os seus limites. Tem de haver um “fora” do território dela. A questão de Bergson: esse “fora” é interior, é a intuição. Na intuição, a experiência interna, o ser não é um objeto que podemos pôr à distância mas nós nos experimentamos a nós mesmos diretamente como parte desse ser. “A matéria e a vida que enchem o mundo estão da mesma forma em nós. As forças que atuam em todas as coisas, nós as sentimos em nós”. A razão serve à vida no sentido da sobrevivência, mas a intuição nos aproxima mais do mistério da vida. Vista na totalidade do mundo, a vida aparece como uma onda interminável que jorra livremente na consciência intuitiva: “Portanto, mergulhemos em nosso próprio interior: tocaremos um ponto muito mais profundo, e um empurrão muito mais forte nos devolverá à superfície…”. O milagre da Recherche proustiana se deve a essa indicação de caminho para o próprio interior onde a vida se revela especialmente misteriosa, estimulando a fantasia na experiência interior do tempo. A razão voltada para fora constrói o tempo físico, mensurável e igual de Newton (tempus quod aequaliter fluit). A experiência interior, portanto a intuição, não conhece outro tempo. É a duração (durée). A vida “dura”, quer dizer que nossa vida consiste de um fluir continuado com ritmos alternantes, adensamentos, paradas e redemoinhos. Nisso nada se perde, é um crescer constante, cada ponto é único porque em nenhum ponto o passado – sempre à nossa frente e nos impelindo em frente – é idêntico, porque o agora que passa se acrescenta ao passado e o modifica. O ser humano move-se no tempo como em um ambiente, mas também “temporaliza” o tempo na medida em que conduz a sua vida – isto é, possui iniciativa e espontaneidade. Ele é um ser principiante. Na experiência de tempo mais interna, segundo Bergson, esconde-se a experiência da liberdade criadora. Uma liberdade que age em todo o universo como potência criadora. Na experiência da liberdade humana, a liberdade criadora do cosmos encontra sua consciência de si mesma. A intuição nos leva ao coração do mundo. “No absoluto estamos, giramos, vivemos.”
É com essa sublimidade, encantada e encantando, alada e promissora, que a filosofia antes de 1914 entoa o tema vida. Mas o jovem Heidegger não se deixa carregar por essa onda. Ele conclui sua tese de 1913 com um olhar seco e rígido para uma lógica pura, com cuja ajuda podemos nos aproximar dos problemas da teoria do conhecimento e articular todo o reino do ser em suas diversas modalidades de realidade (FS, 128).
Com Heidegger ainda não se sente nada daquela sensação de irrupção que Max Scheler expressa em sua Tentativa de uma Filosofia da Vida escrita na mesma época. Uma “transformação da concepção de mundo”, escreve Scheler, ocorre diante de nossos olhos: “Ela será como o primeiro passo de alguém que anos a fio esteve numa prisão escura, para um jardim florido. E essa prisão será o nosso ambiente humano com sua civilização, cercado pela razão meramente mecânica e mecanicizável. E aquele jardim há de ser o mundo colorido de Deus, que nós – mesmo que ainda de longe – vemos abrir-se para nós e nos saudar, luminoso. E aquele prisioneiro será o homem europeu de hoje e ontem, que caminha gemendo e suspirando sob a carga de seus próprios mecanismos, e que, tendo na visão só a terra e peso no corpo, esqueceu o seu Deus e o seu mundo”.
Que esta disposição da irrupção (Aufbruch) da filosofia da vida ainda não tenha conquistado inteiramente o jovem Heidegger é tanto mais espantoso porque lá fora, no tumulto filosófico dos tempos, muitos de seus futuros temas e motivos já estão girando em turbilhão: outra experiência do tempo, tornar fluido o espírito enrijecido, a dissolução do sujeito abstrato do conhecimento, a arte como lugar da verdade.
Será preciso ainda que o mundo de ontem de Heidegger desmorone na guerra mundial. Heidegger ainda terá de entrar no desamparo metafísico antes de descobrir, à sua maneira, a vida que depois batizará de facticidade e existência.