(Levinas1988)
O primado da ontologia heideggeriana não assenta sobre o truísmo: «para conhecer o ente, é preciso ter compreendido o ser do ente». Afirmar a prioridade do ser em relação ao ente é já pronunciar-se sobre a essência da filosofia, subordinar a relação com alguém que é um ente (a relação ética) a uma relação com o ser do ente que, impessoal como é, permite o sequestro, a dominação do ente (a uma relação de saber), subordina a justiça à liberdade. Se a liberdade denota a maneira de permanecer o Mesmo no seio do Outro, o sabor (em que o ente, por intermédio do ser impessoal, se dá) contém o sentido último da liberdade. Ela opor-se-ia à justiça que comporta obrigações em relação a um ente que recusa dar-se, em relação a Outrem que, neste sentido, seria ente por excelência. A ontologia heideggeriana, ao subordinar à relação com o ser toda a relação com o ente, afirma o primado da liberdade em relação à ética. É certo que a liberdade, a que a essência da verdade recorre, não é, em Heidegger, um princípio de livre arbítrio. A liberdade surge a partir de uma obediência ao ser: não é o homem que detém a liberdade, mas a liberdade que detém o homem. Mas a dialectica que concilia assim a liberdade e a obediência, no conceito de verdade, supõe a primazia do Mesmo, a que conduz toda a filosofia ocidental e pela qual ela se define.
A relação com o ser, que actua como ontologia, consiste em neutralizar o ente para o compreender ou captar. Não é, portanto, uma relação com o outro como tal, mas a redução do Outro ao Mesmo. Tal é a definição da liberdade: manter-se contra o outro, apesar de toda a relação com o outro, assegurar a autarcia de um eu. A tematização e a conceptualização, aliás inseparáveis, não são paz com o Outro, mas supressão ou posse do Outro. A posse afirma de facto o Outro, mas no seio de uma negação da sua independência. «Eu penso» redunda em «eu posso» — numa apropriação daquilo que é, numa exploração da realidade, A ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder. Desemboca no Estado e na não-violência da totalidade, sem se presumir contra a violência de que vive essa não-violência e que se manifesta na tirania do Estado. A verdade, que deveria reconciliar as pessoas, existe aqui anonimamente. A universalidade apresenta-se como impessoal e há nisso uma outra inumanidade.
O «egoísmo» da ontologia mantém-se mesmo quando, ao denunciar a filosofia socrática como já olvidador do ser e como já a caminho da noção do «sujeito» e do domínio técnico, Heidegger encontra, no pré-socratismo, o pensamento como obediência à verdade do ser. Obediência que se cumpriria como existir construtor e cultivador, fazendo a unidade do lugar que suporta o espaço. Ao reunir a presença na terra e sob o firmamento do céu, a expectativa dos deuses e a companhia dos mortais, na presença junto das coisas, que equivale a construir e a cultivar, Heidegger, como toda a história ocidental, concebe a relação com outrem como cumprindo-se no destino dos povos sedentários, possuidores e edificadores da terra. A posse é a forma por excelência sob a qual o Outro se torna o Mesmo, tomando-se meu. Ao denunciar a soberania dos poderes técnicos do homem, Heidegger exalta os poderes pré-técnicos da posse. É verdade que as suas análises não partem da coisa-objecto, mas trazem a marca das grandes paisagens a que as coisas se referem, A ontologia torna-se ontologia da natureza, [33] impessoal fecundidade, mãe generosa sem rosto, matriz dos seres particulares, matéria inesgotável das coisas.
Filosofia do poder, a ontologia, como filosofia primeira que não põe em questão o Mesmo, é uma filosofia da injustiça. A ontologia heideggeriana que subordina a relação com Outrem à relação com o ser em geral — ainda que se oponha à paixão técnica, saída do esquecimento do ser escondido pelo ente — mantém-se na obediência do anónimo e leva fatalmente a um outro poder, à dominação imperialista, à tirania. Tirania que não é a extensão pura e simples da técnica a homens reificados. Ela remonta a «estados de alma» pagãos, ao enraizamento no solo, à adoração que homens escravizados podem votar aos seus senhores. O ser antes do ente, a ontologia antes da metafísica — é a liberdade (mesmo que fosse a da teoria) antes da justiça. É um movimento dentro do Mesmo antes da obrigação em relação ao Outro.