Carneiro Leão – obra

Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.

Das vias de interrogação que esse Pensamento Existencial abriu no campo da Literatura, a presente palestra se propõe colocar a interrogação referente à Crítica Literária. Abrir dimensões interrogativas na Literatura é obra da reflexão sobre os fundamentos da existência literária. Trata-se de um movimento que, dobrando-se para dentro da Literatura, busca os vestígios de sua proveniência e origem na existencialidade. Por isso se refere e concentra sobretudo na Crítica Literária. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Nesse sentido também se originou o uso da palavra na Estética da segunda metade do século XVIII. Nas discussões sobre a arte, a obra de arte e a atitude frente a elas, a Crítica estabelecia o decisivo, o constitutivo e definitivo do fenômeno estético em oposição aos demais fenômenos. Kant enriqueceu e aprofundou este uso com a trilogia: Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica da Faculdade de Julgar. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

A Crítica é literária, sendo Literatura, isto é, sendo arte. Para ser literária, tem necessidade de assumir o modo da arte. Ora, a arte chega a seu modo de ser na obra . A obra de arte é passagem obrigatória de todos os caminhos para a arte. Por isso o caminho que nos levará à arte da Crítica será também aqui a obra literária: uma poesia! Por exemplo, a poesia de Mörike, intitulada: Auf eine Lampe! “Para um candelabro”! A vantagem de uma poesia assim é fazer brilhar a nossos olhos o modo de ser da arte numa tensão com um outro modo de ser: o modo de ser do instrumento e utensílio. É uma obra literária sobre um candelabro, instrumento de iluminação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

O modo de ser do instrumento manifesta uma dupla referência: serve ao homem para alguma coisa. Servindo para alguma coisa, o ser do instrumento se insere num complexo de coordenadas e relações. Mas as relações deste conjunto são utilidades do homem. Servindo para alguma coisa, o instrumento serve ao homem. Esta dupla referência revela que a realidade é uma coordenação de todas as coisas. Um sistema de coordenadas. É esse sistema que faz com que toda e qualquer realidade reúna em si e faça alusão a todas as outras, que uma coisa se apoie e repouse em todas as coisas, constitua um ponto de referência e apoio. Neste sistema de coordenadas e apoio, de alusão e referência, reside o modo de ser próprio do instrumento, mora a estrutura constitutiva do utensílio, a instrumentalidade, a utensilidade. Pelo sistema de coordenadas e referências, o candelabro não é apenas um meio de iluminação da sala mas também a revelação de um mundo através de sua própria mundanidade. Na luz de sua iluminação o candelabro ilumina não só o mundo que o integra, mas também a si mesmo como integrante do mundo. O candelabro constitui o mundo e é constituído pelo mundo. Mas ouçamo-lo da poesia de Mörike: 1. Noch unverrückt, o schöne Lampe, schmückest Du, / 2. An weissen Ketten zierlich aufgehangen, / 3. Die Decke des nun fast vergessnen Lustgemach. / 4. Auf Deiner weissen Marmorschale, deren Rand / 5. Der Efeukranz von grüngoldenem Erz umflicht, / 6. Schlingt eine Kinderschar die Ringelreihn. / 7. Wie reizend alles! Lachend! Und ein sanfter Geist des / 8. Ernstes doch ergossen durch die ganze Form. / 9. Ein Kunstwerk echter Art. Wer achtet sein! / 10. Was aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst. // 1. Ainda não removido, belo candelabro, enfeitas, / 2. Preso à graça de correntes delgadas, / 3. A abóbada do quarto de prazeres, hoje quase esquecido. / 4. Em tua bandeja de mármore branco, orlada / 5. Pela grinalda de um bronze verde-ouro, / 6. Um bando de crianças abraça as fileiras de argolas. / 7. Como tudo é sedutor! Risonho! E, no entanto, um ar / 8. De seriedade se derrama suave por toda a forma. / 9. Uma obra de arte da melhor espécie! Quem tem olhos para ver? / 10. Todavia, o que é belo, apresenta em si mesmo um brilho feliz. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Os três penúltimos reúnem os anteriores, isto é, o candelabro, na unidade de sua presença de sedução e gravidade, de alegria e seriedade. Ambas impregnam toda a forma. Forma aqui não se opõe nem exclui mas se compõe e inclui o conteúdo. A forma é o vigor da unidade do candelabro articulada nos primeiros versos. Neste vigor a poesia faz brilhar a beleza do candelabro. Embora não acenda o candelabro, ela permite que apareça a luz de sua beleza. E a beleza aparece numa oposição e diferença, que os versos 7-9 procuram evidenciar. O nono resume toda a poesia até agora, ao dizer que se trata de uma obra de arte verdadeira. Resumir o candelabro é tomá-lo no vigor de sua unidade. É tomá-lo em sua beleza de obra de arte que sempre se opera numa distinção. Por isso Mörike, resumindo o candelabro, refere-se à falta de olhos para a beleza: quem ainda tem olhos para ver? É uma pergunta retórica. O que o poeta pretende é afirmar que já ninguém ou somente poucos os possuem. A pergunta é uma afirmação de pesar. Com o pesar, a pergunta afirma não só que a obra de arte escapa em seu modo de ser à consideração do homem mas também que ela pertence ao homem. Por isso há poesia e o poeta suporta o pesar. O último Verso nos diz desse modo antitético de a arte — o que é belo — morar no país dos homens. Todavia o que é belo apresenta em si mesmo um brilho feliz. O modo de ser da arte é fazer brilhar em si mesmo o mundo dos homens. Na poesia de Mörike isso ocorreu na iluminação do mundo por um instrumento, o candelabro. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Essa análise nos sugere à reflexão toda uma série de questões. O que a poesia faz aparecer são as mesmas referências e as mesmas revelações do mundo que constituem o modo de ser do candelabro, como meio de iluminação. Para que, então, necessitamos da poesia? Por que essa verdade do candelabro não se manifesta plenamente em seu emprego? Por que é preciso para isso de uma obra literária que ninguém pode usar para acender um quarto? E por que essa relação toda é privilégio de uma obra de arte enquanto a presença objetiva de um candelabro não no-la pode transmitir? Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

O simples uso do candelabro não nos transmite as manifestações do mundo que seu ser instaura. É que seu emprego reside justamente em servir-se de suas relações efetivas, em usar seus serviços sem procurar realçar o sistema de referências que os possibilita. Usar um instrumento é obrigá-lo a desaparecer no uso que dele se faz. O bom candelabro é aquele de que não se sente a presença. Usar um instrumento é não se deter em seu modo de ser e sim passar através de sua utilidade à obtenção de sua finalidade. Para que o instrumento nos manifeste seu modo de ser, é necessário mudar de comportamento. É o que acontece na arte. A obra de arte nos abre e mostra o ser do candelabro como instrumento de iluminação. O modo de ser da arte é manifestar o mundo de tudo aquilo que é. É verdade que essa manifestação do ser se opera em toda atividade e em todo comportamento humano. Todavia, nem sempre é desenvolvida explicitamente. A ciência, por exemplo, é implicitamente uma manifestação do mundo, não obstante ela não se preocupa nem se atém à revelação do ser das coisas. Atenta ao que no real é determinação objetiva, universalizável e pragmática, a ciência não considera o mundo, a presença, a abertura do real. A graça das correntes, a seriedade do verde-ouro no candelabro, nenhum cálculo, nenhuma experimentação científica seria capaz de nos revelar. Assim a arte é um modo de verdade da existência enquanto instauradora de mundo. Essa instauração ela consegue pela obra . A obra é necessária. Para aparecer em seu mundo, as coisas devem ser subtraídas a nossos propósitos de utilização, elas se devem fazer inúteis. Em segundo lugar, devem ser integradas na dinâmica de um mundo. A inutilização das coisas não é contemplação. É uma integração no sistema de coordenadas de referência e apoio. A obra de arte é uma operação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Essas reflexões nos dizem que o processo de instauração do mundo comporta sempre a edificação de uma obra , uma operação. Assim como a arte, a ação criadora do político, que funda um novo sistema de convivência, o comportamento do herói, que realiza um sacrifício transcendente, a reflexão do pensador que converte em marcha de pensamento a verdade da existência, sempre qualquer processo de instauração do mundo é a edificação de uma obra . É um primeiro resultado. O segundo se refere à Linguagem como dinamismo e potência da obra . Instituir originariamente um mundo é a força criadora da Linguagem. Toda Linguagem é articulação de um mundo em que se estrutura a existência na multiplicidade de suas manifestações. As diversas línguas traçam toda a história, as vicissitudes da Linguagem pela qual todos os povos se elevam a um mundo de presença humana que dá sentido a toda a sua existência. São assim maneiras que permitem a cada povo engrenar-se na História da Humanidade e tomar parte, dando a sua parte, na instauração do mundo humano. A obra de arte é a revelação do mundo da existência na força da Linguagem. Essa Linguagem assume na Literatura a forma de língua. Ser literária significa para a Crítica assumir a obra de arte na Linguagem das palavras. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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