Excertos do livro “Aprendendo a Pensar”, Tomo I.
As mais das vezes esse acúmulo de conhecimentos periféricos só nos cega para a presença extraordinária da filosofia na existência. A fim de identificá-la, não basta conhecer a historiografia filosófica e abstrair dos grandes pensadores um traço que seja comum a todos. Desde o fim da antiguidade nos foram transmitidos seis conceitos abstratos de filosofia: 1. conhecimento das coisas enquanto são; 2. conhecimento das coisas divinas e humanas; 3. preocupação com a morte; 4. assimilação de Deus segundo as possibilidades do homem; 5. arte das artes e ciência das ciências; 6. amor à sabedoria. Aprendendo a pensar I: A Filosofia na Idade da Ciência
Quer nos esforços para distinguir as Ciências do Espírito das Ciências da Natureza, quer no entusiasmo pela psicologia descritiva, tanto nas investigações de pedagogia como nas reflexões sobre a arte , sempre é a história o único ponto centralizador de suas preocupações de filósofo. Dela adquirem unidade e consistência todas as suas obras durante o percurso inquieto de uma longa evolução. Nos anos de juventude propõe a história como a única dimensão capaz de possibilitar um desenvolvimento satisfatório do problema humano fundamental que tem atormentado os filósofos de todos os tempos em suas reflexões metafísicas. Os anos de madureza, os dedica à tarefa preliminar de uma fundamentação das Ciências do Espírito como a base da estruturação do mundo histórico. Nos anos da velhice constrói toda uma série de projetos que propõem o mundo da história fundamentado numa Crítica da Razão Histórica como a solução de todo o problema humano. A morte em 1911 tirou-lhe a possibilidade de executar esses projetos. Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
A consciência histórica moderna deve sua formação e desenvolvimento à consciência científica moderna. Esta se caracteriza por uma nova relação do homem com o mundo. “A natureza, escreve Dilthey, já não se lhe apresenta como uma criatura divina. O homem meteu-lhe as mãos para arrancar as “forças de suas formas”.’ Na formação dessa nova consciência entram três elementos essenciais: o cristianismo reformado que se funda na experiência humana da religiosidade cristã, a arte como processo de apreensão da realidade e a ciência, enquanto análise da experiência. Lutero, L. da Vinci e Galileu são os corifeus da nova consciência do homem moderno. O traço comum e unificador dessa tríplice estrutura é a autocerteza garantida pela experiência interna. Uma exigência de natureza crítica, que faz da consciência histórica moderna fundamentalmente uma consciência crítica tanto no tocante à realidade do mundo externo quanto no referente ao próprio processo histórico. A autoconsciência dessa historicidade se torna crítica no movimento espiritual que culmina em Carlyle, Ranke e Tocqueville. É aqui que a consciência histórica se dá conta de que toda a sua vida é uma objetivação de seu próprio desenvolvimento histórico. O resultado dessa tomada de consciência crítica é a superação mais radical do individualismo que em todas suas formas se funda numa consciência ingênua de introspecção. ” Aprendendo a pensar I: O Problema da História em W. Dilthey
O pensamento está sempre em tensão: com a consciência, a filosofia, a ciência, a técnica, o bom senso, a ideologia, o mito, a religião, a arte , consigo mesmo. Em todas suas tensões o pensamento, sendo um apelo e um desafio de libertação, é logo desprezado. Pois comparado com a moda, nunca está em voga. Para o desenvolvimento econômico só contribui com o Nada. No mundo dos negócios é um ócio de outro mundo. Na vida do trabalho não serve para bater um prego. De fato com todos esses propósitos não se poderia dar melhor demonstração da inutilidade do pensamento. Realmente, pensar é inútil, caso já esteja decidido, o que é o útil. Realmente, o pensamento é imprestável caso já esteja estabelecido que tijolo e cimento armado são mais reais do que o mistério de ser. Realmente, o pensamento é indesejável, caso já esteja acertado que crescer é aumentar de tamanho ou subir as séries de uma escala. Realmente, pensar é alienante, caso já esteja descontado, o que é o homem. Realmente, pensar é contra-producente, caso já esteja resolvido que o coração é apenas uma bomba e o homem, um tubo digestivo com entrada e saída. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
Um pensamento originário é a coragem de descer às raízes das próprias possibilidades de pensar. Um pensamento originário é um pensamento radical. Procura interpretar os modos de ser da realidade, restituindo as estruturas de suas diferenças à identidade do mistério. O modo de ser, que nos apresenta como presente, não é originariamente um determinado presente cronológico. É tão antigo como a história. Algo, que é e sempre foi como é, por mais que se recue no tempo, é reconduzido ao vigor de um destino que estrutura a dimensão radical do Ser e por isso remonta para além de toda memória historiográfica. É a partir deste diapasão que nos fala o pensamento originário. O que é e como é o espaço-tempo de todas as coisas nas diferenças de seus modos presentes de ser é pensado num pensamento re-velador da identidade no mistério das dicotomias de ser e não ser, de movimento e permanência, de uno e múltiplo, de aparência e verdade. O propósito desta hermenêutica não é corrigir ou substituir-se à ciência. Nem mesmo é o diálogo pelo diálogo mas exclusivamente o que no diálogo se faz linguagem: a identidade que misteriosamente reivindica, de modo diferente, a nós modernos e aos gregos antigos, por ter aviado a aurora do pensamento no Dia do Ocidente. É na viagem deste Dia que o pensamento dos primeiros pensadores se faz originário. Originário não diz, portanto, uma determinação cronológica nem indica uma explicação diacrônica do modo de ser ocidental. Originária é a aurora em que a própria escuridão do Ser se dá em sempre novas vicissitudes de sua verdade, ora como pensamento ora como filosofia, ora como cristianismo ora como modernidade, ora como ciência ora como mito, ora como técnica ora como arte , ora como planetariedade ora como marginalidade, mas sempre em qualquer ora, tanto outrora como agora, só se dá enquanto se retrai como mistério. Aprendendo a pensar I: O pensamento originário
4. O Lugar da Introdução à Metafísica: A obra apresentada agora em tradução portuguesa se enquadra dentro do pensamento de Heidegger na passagem do primeiro para o segundo movimento. Como as Preleções de Hegel são indispensáveis para a compreensão de suas obras sistemáticas, assim também o presente curso de preleções é imprescindível para se penetrar na oscilação dialética da superação da metafísica no pensamento de Heidegger. Escrita em 1935, a Introdução à Metafísica descreve o espaço de movimento da superação, dando os passos decisivos do retorno às origens do esquecimento do Ser da metafísica. Retomando o conteúdo do escrito, Vom Wesen der Wahrheit (Da Essencialização da Verdade), conferência pronunciada já em 1930, Heidegger mostra como as raízes mais profundas do mundo moderno se foram implantando, através do processo de constituição histórica, num esquecimento sempre mais acentuado do Ser. A metafísica é o fundamento em que se edifica toda a civilização Ocidental. A tecnocracia desenfreada, o império. da ciência, a estetificação da arte , a fuga dos deuses, a massificação do homem, a organização planetária, a disposição da natureza, os estados totalitários, a despotencialização do espírito, todas essas manifestações do mundo ocidental são criações e obras do predomínio da metafísica. O esquecimento do Ser não é um episódio da vida intelectual de filósofos. É o destino histórico da existência do Ocidente, cuja máxima virulência moderna constitui um apelo. O homem da era atômica, ator e vítima de uma Época sem memória para o Ser, é constantemente provocado a recobrar essa memória, que lhe dará as forças para instaurar um Novo Dia Histórico. A Noite Longa, que a experiência da História de Hölderlin sente iniciar-se com os tempos modernos, é o espaço de restauração das forças do Ser para o amanhecer de uma outra época. Assim a Introdução à Metafísica é a preparação de uma superação, que não substima o que o homem do Ocidente tem pensado e construído. Visa ao contrário recuperar o Sentido do Ser necessariamente esquecido no destino da tradição histórica. Aprendendo a pensar I: Itinerário do Pensamento de Heidegger
A época da técnica e da ciência se essencializa numa “época” em que o Ser como Ser é nada, por se destinar tanto na objetividade-subjetividade do ente como na subjetividade-objetividade do homem. O homem só é homem, quando realiza sua humanidade como o “sujeito” da objetividade. A objetividade é tanto mais objetiva quanto mais for controlada e estabelecida em sua objetividade, vale dizer, quanto mais o homem for “subjetividade”. Correlativamente, o ente só é ente quando afirma sua entidade como objeto da subjetividade, isto é, no grau em que se presta ao controle exato da subjetividade. A objetividade é o supremo valor. A arte , a poesia, a religião, a filosofia só possuem valor, se passarem no controle de objetividade. A vigência da correlação de subjetividade e objetividade, que hoje vai atingindo o paroxismo, é, pensada como “época”, o destinar-se do Ser no esquecimento. Nesse esquecimento moderno, isto é, nas fases de progresso da técnica e da ciência, se derrama a escuridão da “Noite Histórica” na qual o homem, perdendo os fundamentos de sua humanidade, “erra”, sem pátria, no turbilhão de uma objetividade sempre mais absorvente de subjetividade. A “época” da técnica e da ciência é o império do homem a-pátrida em sua Essência. Aprendendo a pensar I: Sobre o Humanismo
Nesse sentido também se originou o uso da palavra na Estética da segunda metade do século XVIII. Nas discussões sobre a arte , a obra de arte e a atitude frente a elas, a Crítica estabelecia o decisivo, o constitutivo e definitivo do fenômeno estético em oposição aos demais fenômenos. Kant enriqueceu e aprofundou este uso com a trilogia: Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica da Faculdade de Julgar. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
A Crítica é literária, sendo Literatura, isto é, sendo arte . Para ser literária, tem necessidade de assumir o modo da arte . Ora, a arte chega a seu modo de ser na obra. A obra de arte é passagem obrigatória de todos os caminhos para a arte . Por isso o caminho que nos levará à arte da Crítica será também aqui a obra literária: uma poesia! Por exemplo, a poesia de Mörike, intitulada: Auf eine Lampe! “Para um candelabro”! A vantagem de uma poesia assim é fazer brilhar a nossos olhos o modo de ser da arte numa tensão com um outro modo de ser: o modo de ser do instrumento e utensílio. É uma obra literária sobre um candelabro, instrumento de iluminação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
O modo de ser do instrumento manifesta uma dupla referência: serve ao homem para alguma coisa. Servindo para alguma coisa, o ser do instrumento se insere num complexo de coordenadas e relações. Mas as relações deste conjunto são utilidades do homem. Servindo para alguma coisa, o instrumento serve ao homem. Esta dupla referência revela que a realidade é uma coordenação de todas as coisas. Um sistema de coordenadas. É esse sistema que faz com que toda e qualquer realidade reúna em si e faça alusão a todas as outras, que uma coisa se apóie e repouse em todas as coisas, constitua um ponto de referência e apoio. Neste sistema de coordenadas e apoio, de alusão e referência, reside o modo de ser próprio do instrumento, mora a estrutura constitutiva do utensílio, a instrumentalidade, a utensilidade. Pelo sistema de coordenadas e referências, o candelabro não é apenas um meio de iluminação da sala mas também a revelação de um mundo através de sua própria mundanidade. Na luz de sua iluminação o candelabro ilumina não só o mundo que o integra, mas também a si mesmo como integrante do mundo. O candelabro constitui o mundo e é constituído pelo mundo. Mas ouçamo-lo da poesia de Mörike: 1. Noch unverrückt, o schöne Lampe, schmückest Du, / 2. An weissen Ketten zierlich aufgehangen, / 3. Die Decke des nun fast vergessnen Lustgemach. / 4. Auf Deiner weissen Marmorschale, deren Rand / 5. Der Efeukranz von grüngoldenem Erz umflicht, / 6. Schlingt eine Kinderschar die Ringelreihn. / 7. Wie reizend alles! Lachend! Und ein sanfter Geist des / 8. Ernstes doch ergossen durch die ganze Form. / 9. Ein Kunstwerk echter Art. Wer achtet sein! / 10. Was aber schön ist, selig scheint es in ihm selbst. // 1. Ainda não removido, belo candelabro, enfeitas, / 2. Preso à graça de correntes delgadas, / 3. A abóbada do quarto de prazeres, hoje quase esquecido. / 4. Em tua bandeja de mármore branco, orlada / 5. Pela grinalda de um bronze verde-ouro, / 6. Um bando de crianças abraça as fileiras de argolas. / 7. Como tudo é sedutor! Risonho! E, no entanto, um ar / 8. De seriedade se derrama suave por toda a forma. / 9. Uma obra de arte da melhor espécie! Quem tem olhos para ver? / 10. Todavia, o que é belo, apresenta em si mesmo um brilho feliz. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Os três penúltimos reúnem os anteriores, isto é, o candelabro, na unidade de sua presença de sedução e gravidade, de alegria e seriedade. Ambas impregnam toda a forma. Forma aqui não se opõe nem exclui mas se compõe e inclui o conteúdo. A forma é o vigor da unidade do candelabro articulada nos primeiros versos. Neste vigor a poesia faz brilhar a beleza do candelabro. Embora não acenda o candelabro, ela permite que apareça a luz de sua beleza. E a beleza aparece numa oposição e diferença, que os versos 7-9 procuram evidenciar. O nono resume toda a poesia até agora, ao dizer que se trata de uma obra de arte verdadeira. Resumir o candelabro é tomá-lo no vigor de sua unidade. É tomá-lo em sua beleza de obra de arte que sempre se opera numa distinção. Por isso Mörike, resumindo o candelabro, refere-se à falta de olhos para a beleza: quem ainda tem olhos para ver? É uma pergunta retórica. O que o poeta pretende é afirmar que já ninguém ou somente poucos os possuem. A pergunta é uma afirmação de pesar. Com o pesar, a pergunta afirma não só que a obra de arte escapa em seu modo de ser à consideração do homem mas também que ela pertence ao homem. Por isso há poesia e o poeta suporta o pesar. O último Verso nos diz desse modo antitético de a arte — o que é belo — morar no país dos homens. Todavia o que é belo apresenta em si mesmo um brilho feliz. O modo de ser da arte é fazer brilhar em si mesmo o mundo dos homens. Na poesia de Mörike isso ocorreu na iluminação do mundo por um instrumento, o candelabro. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Essa análise nos sugere à reflexão toda uma série de questões. O que a poesia faz aparecer são as mesmas referências e as mesmas revelações do mundo que constituem o modo de ser do candelabro, como meio de iluminação. Para que, então, necessitamos da poesia? Por que essa verdade do candelabro não se manifesta plenamente em seu emprego? Por que é preciso para isso de uma obra literária que ninguém pode usar para acender um quarto? E por que essa relação toda é privilégio de uma obra de arte enquanto a presença objetiva de um candelabro não no-la pode transmitir? Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
O simples uso do candelabro não nos transmite as manifestações do mundo que seu ser instaura. É que seu emprego reside justamente em servir-se de suas relações efetivas, em usar seus serviços sem procurar realçar o sistema de referências que os possibilita. Usar um instrumento é obrigá-lo a desaparecer no uso que dele se faz. O bom candelabro é aquele de que não se sente a presença. Usar um instrumento é não se deter em seu modo de ser e sim passar através de sua utilidade à obtenção de sua finalidade. Para que o instrumento nos manifeste seu modo de ser, é necessário mudar de comportamento. É o que acontece na arte . A obra de arte nos abre e mostra o ser do candelabro como instrumento de iluminação. O modo de ser da arte é manifestar o mundo de tudo aquilo que é. É verdade que essa manifestação do ser se opera em toda atividade e em todo comportamento humano. Todavia, nem sempre é desenvolvida explicitamente. A ciência, por exemplo, é implicitamente uma manifestação do mundo, não obstante ela não se preocupa nem se atém à revelação do ser das coisas. Atenta ao que no real é determinação objetiva, universalizável e pragmática, a ciência não considera o mundo, a presença, a abertura do real. A graça das correntes, a seriedade do verde-ouro no candelabro, nenhum cálculo, nenhuma experimentação científica seria capaz de nos revelar. Assim a arte é um modo de verdade da existência enquanto instauradora de mundo. Essa instauração ela consegue pela obra. A obra é necessária. Para aparecer em seu mundo, as coisas devem ser subtraídas a nossos propósitos de utilização, elas se devem fazer inúteis. Em segundo lugar, devem ser integradas na dinâmica de um mundo. A inutilização das coisas não é contemplação. É uma integração no sistema de coordenadas de referência e apoio. A obra de arte é uma operação. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Essas reflexões nos dizem que o processo de instauração do mundo comporta sempre a edificação de uma obra, uma operação. Assim como a arte , a ação criadora do político, que funda um novo sistema de convivência, o comportamento do herói, que realiza um sacrifício transcendente, a reflexão do pensador que converte em marcha de pensamento a verdade da existência, sempre qualquer processo de instauração do mundo é a edificação de uma obra. É um primeiro resultado. O segundo se refere à Linguagem como dinamismo e potência da obra. Instituir originariamente um mundo é a força criadora da Linguagem. Toda Linguagem é articulação de um mundo em que se estrutura a existência na multiplicidade de suas manifestações. As diversas línguas traçam toda a história, as vicissitudes da Linguagem pela qual todos os povos se elevam a um mundo de presença humana que dá sentido a toda a sua existência. São assim maneiras que permitem a cada povo engrenar-se na História da Humanidade e tomar parte, dando a sua parte, na instauração do mundo humano. A obra de arte é a revelação do mundo da existência na força da Linguagem. Essa Linguagem assume na Literatura a forma de língua. Ser literária significa para a Crítica assumir a obra de arte na Linguagem das palavras. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura
Agora talvez esteja mais claro qual é o problema da Crítica Literária, onde reside toda a angústia do Crítico. É o problema de não ser arte literária, de não ser Literatura para ser apenas ciência da Literatura. É a angústia de criticar a arte literária com os critérios da filologia e da lingüística, da poética e da teoria. É a angústia de exercer apenas uma crítica científica sem ser principalmente a consciência literária da existência e a consciência existencial da Literatura. Aprendendo a pensar I: Existencialismo e Literatura