Apel (2000) – fenomenologia hermenêutica

(Apel2000)

Em lugar das coações categoriais de pensamento e comportamento que partem da “disponibilizaçâo” [Gestell] técnico-científica — ainda que não em lugar das coações sócio-econômicas que poderiam estar associadas a isso —, a fenomenologia hermenêutica de [27] proveniência heideggeriana proporciona, em primeiro lugar, o des-vendamento da experiência cotidiana; a seguir, sobretudo, o da experiência poética, e o da experiência pré-metafisica — esta última, a ser reconstruída a partir dos fragmentos dos pré-socráticos —, em que o sentido do ser torna-se disponível, ainda sem considerar a “disponibilização”. Pode-se supor que nesse ponto, com os assim chamados “pensadores da linguagem” (Rosenzweig, Buber e Rosenstock-Huessy)1, seja também validada a experiência existencial do “eu-tu”, atestada, por exemplo, na tradição bíblica, pelo menos enquanto essa tradição não esteja subordinada à gramática greco-ontológica que valorize a experiência objetiva expressa no pronome “isso”. Na “hermenêutica filosófica” de Gadamer, o pensamento fenomenológico ingressa em uma relação crítica mais estreita com a ideia do método, já que ela se tornara determinativa para as ciências humanas, em especial no historicismo semi-positivista do século XIX. O desvendamento da experiência refere-se, agora, aos fenômenos das condições existenciais de possibilidade do “Compreender”, “esquecidos” nas metodologias histórico-hermenêuticas — isso sem falar de suas reduções neopositivistas: mencione-se como exemplo o fenômeno da circunscrição de todos os atos subjetivos ou de todas as operações do Compreender a um acontecimento da própria transmissão da tradição, no qual não pode haver qualquer conscientização definitiva, nem tampouco uma objetivação metódica da “pré-estrutura” [Vorstruktur] existencial (ou seja, do “pré-entendimento” constitutivo, e portanto dos inevitáveis “preconceitos” [Vorurteile]).

Um dos principais méritos da fenomenologia hermenêutica em geral parece-me residir no seguinte: mesmo em meio à “lógica científica” moderna — e a “metodologia” popperiana inclui-se aí —, ela opõe resistência ao processo de atrofia que sofrem a teoria e a crítica do conhecimento de origem kantiana. Além de tornar novamente visíveis os pressupostos transcendentais da lógica científica, sobre os quais já não se falava, revelando-os como pressupostos da relação sujeito-objeto cartesiano-kantiana, ela ainda descobriu, por meio da radicalização do interesse em apropriar-se do “compreender”, estruturas semi-transcendentais que simplesmente não podem ser concebidas de acordo com o esquema da relação sujeito-objeto cartesiano-kantiana. Entre elas, destaca-se a assim chamada “pré-estrutura existencial” do compreender descoberta por Heidegger: como estrutura do “ser-no-mundo” [In-der-Welt-Sein] (do “ser que ao encontrar o ente intramundano” é o ser que possibilita as intenções), ela implica ao mesmo tempo a superação do idealismo epistemológico; como estrutura do “ser-com” [Mitsein], possibilita ao mesmo tempo a superação do solipsismo metódico; como estrutura do pré-entendimento, marcada desde o início lingüística e historicamente, possibilita ademais o questionamento da alternativa abstrata entre apriorismo e empirismo, por meio da figura de pensamento do “círculo hermenêutico”; e, como estrutura do “ser-que-se-antecipa” do ser-aí [Sich-vorweg-Seins des Daseins], no modo da “preocupação” [Sorge] voltada ao futuro, ela implica o questionamento da ideia do conhecimento livre de interesses de algo como algo, ainda presente em Husserl.2 — Na descoberta da “pré-estrutura” do Compreender esteve sempre assinalada, desde o início, a possibilidade da elaboração de pressupostos semi-transcendentais de uma teoria do conhecimento inédita. É o que ocorre, sobretudo, com a tematização da linguagem como um a priori ineludível do Compreender — que talvez não seja sequer passível de reconstrução 3. Esteve assinalada ainda — no “ser-que-se-antecipa” — a tematização dos “êxtases” do “tempo original” (futuro, presente, passado) e dos respectivos modos do conhecimento: o “esboço do Compreender” (fantasia), ligado ao futuro (que transcende o presente); a apreensão sensível, ligada ao presente; e a lembrança, ligada ao tempo passado; ou ainda — no ser-no-mundo — o “a priori do corpo”, elaborado sobretudo por Μ. Merleau-Ponty como condição do conhecimento (“ponto de vista da posse do mundo”)4; e, finalmente, a possibilidade perseguida sobretudo pelo [29] próprio Heidegger de uma fundação da verdade qua corretismo [Richtigkeit] dos juízos ou das asserções em meio à “descoberta” acobertante de sentido, ou em seu “desocultamento” ocultante, em razão da “síntese hermenêutica” (tal como foi chamada de início) de algo como algo, em sua “circunstância explicativa” ou “significância” [Bedeutsamkeit].

  1. Cf. W. Rohrbach, Das Sprachdenken Eugen Rosenstock-Huessys, tese de doutoramento apresentada na cidade de Saarbrücken 1970.[↩]
  2. Cf. minha tese de doutoramento (não publicada): Dasein und Erkennen: eine erkenntnistheoretische Interpretation der Phiolosophie Μ. Heideggers, Bonn 1950.[↩]
  3. Cf. K.-O. Apel, Die Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus, von Dante bis Vico, Bonn 1963, “Introdução”.[↩]
  4. Cf. A. Podlech, Der Leib als Weise des In-der-Welt-Seins, Bonn 1956.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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