[…] Em 1928, no curso sobre os Fundamentos Metafísicos da Lógica (
GA26), após identificar a compreensão do ser com a
transcendência originária, Heidegger expõe “o problema de
Ser e Tempo” em doze proposições diretrizes articuladas em torno da neutralidade essencial do
Dasein. Subordinada à única questão do ser, a analítica existencial não é nem uma antropologia nem uma ética. Portanto – e esta é a primeira proposição –: “Para o ente que é o tema da analítica, não foi escolhido o título ‘homem’, mas o título neutro ‘Dasein’. Com isso, designa-se o ente ao qual, em um
sentido determinado, sua própria maneira de ser não é indiferente” (
GA26:171). Inseparável do ser-sempre-meu e da existência, uma vez que a ipseidade é constituída pela relação com o ser que, além disso, não é um gênero, a neutralidade subtrai o
Dasein do domínio antropológico. Qual é a extensão da região “antropologia”? Ela abrange tudo o que diz respeito à natureza do homem como ser espiritual, psíquico e carnal, tudo o que o distingue dos outros seres vivos ou poderia aproximá-lo deles, como a diferença dos sexos (
GA3, §37). Se a sexualidade e a encarnação são de fato traços antropológicos, a neutralidade essencial implica esta segunda proposição: “A neutralidade específica do título ‘Dasein’ é essencial porque a interpretação desse ente deve ser realizada antes de qualquer concreção factual. Essa neutralidade também significa que o
Dasein não é de nenhum dos dois sexos. Mas essa assexualidade não é a indiferença da nulidade vazia, a negatividade impotente de um nada ôntico indiferente. O
Dasein em sua neutralidade não é indiferentemente ninguém e todo
mundo, mas a positividade e o poder originários da essência” (
GA26:171-172). O
Dasein neutro, portanto, nunca é este ou aquele existente encarnado de fato, mas a possibilidade de toda existência encarnada que pertence a si mesma. Se, consequentemente, ele não pode se confundir com a individualidade ôntica factual, o
Dasein tampouco é a concreção indiferente de uma essência supostamente universal, a afirmação da neutralidade equivalendo aqui à afirmação da individuação mais radical: a ipseidade. No ensaio de 1929 dedicado à Essência do Fundamento, diretamente derivado do curso citado, Heidegger esclarece em que
sentido a ipseidade é neutra: “É somente porque o
Dasein como tal é determinado pela ipseidade que um eu mesmo pode estar em relação com um tu mesmo. A ipseidade é a pressuposição para a possibilidade da egoidade, que nunca se revela senão no tu. Mas a ipseidade nunca está ligada ao tu – ela o torna possível –, ao contrário, ela é neutra em relação ao ser-eu e ao ser-tu, e mais ainda em relação à sexualidade. Todas as proposições essenciais de uma analítica ontológica do
Dasein no homem consideram de antemão esse ente nessa neutralidade” (
Questions I, p. 133-134). As análises desenvolvidas pela hermenêutica existencial, tanto aquela da existência própria, onde o
Dasein se compreende a partir de si mesmo e de seu ser-para-a-morte, quanto aquela da existência imprópria, onde ele se compreende na órbita do ser simplesmente presente, são regidas por essa neutralidade essencial. Ora, a ipseidade própria essencialmente neutra é uma modificação existencial do
on (francês, pronome que declina a identidade do
Dasein cotidiano, decaído, irresoluto, impróprio –
das Man,
o impessoal). E esse
on também é, mas em um
sentido secundário, neutro (
SZ:126). Há, portanto, duas neutralidades e não uma única neutralidade marcada duas vezes, a neutralidade essencial do
Dasein não sendo a de um “ninguém e todo mundo”, ou seja, do
on (
SZ:128, 253). Diante disso, como se pode, e principalmente quem – qual
Dasein, sob qual modo de ser – poderá discriminar a neutralidade originária da neutralidade em decadência? Dado que o
Dasein só pode colocar a questão do ser como questão de seu ser ao se libertar da influência do
on para ser ipseidade própria, a demarcação rigorosa desses dois sentidos da neutralidade não suporta nada menos que a possibilidade da própria questão do ser. A introdução temática da neutralidade ameaça, portanto, gravemente, por consequência, a economia geral da ontologia fenomenológica. Encontramos, transformada, a questão de saber como
Ser e Tempo se deixa compreender em uma história existencialmente construída.
A quais motivos obedece essa adição da neutralidade? É sem dúvida nos Fundamentos Metafísicos da Lógica (GA26) que Heidegger reiterou uma última vez ou reinterpretou pela primeira vez o projeto de uma ontologia fundamental como analítica do Dasein. As reformulações ali testemunham a emergência progressiva da diferença ontológica. A ontologia fundamental permanece interpretação da existência e analítica da temporalidade do ser, mas esta, que deveria ocupar a seção “Tempo e Ser”, é agora simultaneamente compreendida como “a virada pela qual a ontologia mesma retorna explicitamente a uma ôntica metafísica onde ela sempre se mantém implicitamente” (GA26:201). A interpretação temporal do ser se inclina para a diferença ontológica, e para colocar o problema da metafísica é necessário “levar a ontologia à virada (Umschlag, que traduz μεταβολή) nela latente. Ali se realiza a virada, e a virada ocorre na metontologia” (Ibid.). Essa reviravolta da ontologia fundamental em metontologia responde a três imperativos intrinsecamente ligados: 1) o de, primeiro, não absolutizar a questão do ser ao tematizar também a totalidade do ente, pois “pensar o ser como ser do ente e apreender de maneira radical e universal o problema do ser significa ao mesmo tempo tematizar o ente em sua totalidade à luz da ontologia” (Ibid., 200). Sob esse ponto de vista, a metontologia acentua a finitude do filosofar mesmo; 2) o de, em seguida, dar conta, ao cobrir o campo dos problemas filosóficos que a ontologia fundamental não esgota por si só, daquilo que mais tarde será chamado de constituição onto-teo-lógica da metafísica: “Ontologia fundamental e metontologia formam em sua unidade o conceito de metafísica. Isso não faz mais do que expressar a transformação do problema fundamental da filosofia mesma, já esboçado com o duplo conceito da filosofia como πρώτη φιλοσοφία e θεολογία. E isso não é senão a concreção da diferença ontológica, ou seja, a concreção do cumprimento da compreensão do ser” (Ibid., 202); 3) o de, finalmente, reunir a filosofia como metafísica da existência sobre a diferença ontológica, em suma, pensar esta na conceitualidade de Ser e Tempo. É necessário, então, que o Dasein, na medida em que compreende o ser, seja assimilado à diferença ontológica1. E como poderia sê-lo sem ser essencialmente neutro?
A neutralidade visa, no mesmo movimento, preservar a analítica existencial de qualquer desvio antropológico e permite resolver a ambiguidade residual de alguns enunciados de Ser e Tempo onde o Dasein parece se confundir com o homem2. Mas a essência é a essência por seu próprio fato, e, se a essência do homem se afasta do homem, é, no entanto, o Dasein neutro que constitui a possibilidade do existente factual. Ora, este é sempre encarnado e sexuado. Afirmar a neutralidade do Dasein é, em contrapartida, dar-se a tarefa de elucidar a possibilidade existencial da carne. O problema pode então tomar a seguinte forma: sob qual título o Dasein detém a possibilidade de sua encarnação, sob qual existencial a carne se deixa compreender?
(DFHPE)