Jean-Louis Chrétien (2014) – “Tornei-me uma pergunta para mim mesmo”

Na meditação sobre a memória do livro X das Confissões, Santo Agostinho mostra, em expressões que Heidegger considerou decisivas, que aquele que interroga os poderes do homem se transforma para si mesmo em pergunta: “Tornei-me uma pergunta para mim mesmo”1. E esta pergunta põe-no realmente à prova: “Tornei-me para mim uma terra de dificuldade e de suor abundante”, porque “eu próprio não compreendo tudo o que sou”2. Esta prova quase insuportável em que o homem se torna para si mesmo não tem nada a ver aqui com o mal ou o pecado, mas com o excesso do homem sobre si mesmo, o excesso do que ele é e do que ele pode sobre o que ele pensa e compreende. É neste sentido que Santo Agostinho descreve o poder da memória como “algo de terrível” (nescio quid horrendum), embora não haja certamente nada de mau nele 3. A que se deve este excesso, este transbordamento ou transgressão do si sobre si mesmo?

[CHRÉTIEN, Jean-Louis. L’inoubliable et l’inespéré. Nouvelle éd. augmentée ed. Paris: Desclée de Brouwer, 2014]
  1. Saint Augustin, Confessions, X, XXXIII, 50.[]
  2. Op. cit., X, XVI, 25, et X, VII, 15.[]
  3. Op. cit., X, XVII, 26.[]