Luijpen – Dupla possibilidade: realismo e idealismo

LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973

Partindo do pensamento comum de Descartes e Locke, dada a distinção entre subjetividade e mundo, fica aberta a possibilidade de várias direções, conforme a ênfase atribuída a um dos membros da oposição. Nesse sentido, podemos distinguir o idealismo e o realismo.

O idealismo ressalta muito a consciência, sua prioridade, sua espontaneidade, sua atividade. Descartes, contudo, ainda ligara a consciência ao mundo, embora sem conseguir justificar o modo como o fez. O idealismo tomou a si superar a ligação da consciência com o mundo, eliminando totalmente o último como fonte do conhecimento. Considera então a percepção do mundo pela consciência, com sua obscuridade e confusão, como uma forma ilegítima de conhecer, forma a ser superada e substituída pela clareza da ideia auto-suficiente. No perceber, a consciência se acha num estado de alienação de si, ou — o que dá na mesma — no mundo material as ideias claras e distintas se encontram num estado de alienação. A consciência tem de voltar a si mesma, superando o ser-alienado-de-si-na-matéria. Uma vez voltada a si mesma, a consciência é auto-suficiente, puro pour-soi (para-si), capaz de reflexão perfeita.

Enquanto no idealismo se isola do mundo a consciência, explicitando-a como atividade pura com relação ao conteúdo do conhecimento, dá-se quase o contrário no realismo. Assim como o idealismo se sente impressionado por certo aspecto da consciência, a saber, sua espontaneidade, exagerando-o, também o realismo contém uma intuição básica do filosofar, ou seja, a concepção da “sensibilidade” (ao contrário da espontaneidade) , da passividade da consciência. De fato, é inegável que as realidades se impõem à consciência perceptora, que esta acha a realidade. Eis por que os realistas jamais quiseram ouvir falar de ideias inatas, sustentando que todo conhecimento provém da experiência da realidade.

Contudo, a realidade do mundo explicita-se de um modo especial, bem como, de resto, a experiência dele. A realidade é para um realista um mundo-em-si; é a realidade bruta, um mundo inumano, enquanto abstrai do homem e de sua consciência perceptora. O realista não vê de modo algum a espontaneidade, a presença ativa da consciência, e pensa estar autorizado a falar de um mundo sem homem. A consciência, por conseguinte, há de ser entendida como pura passividade, como tabula rasa, folha em branco, uma sensível placa fotográfica, um espelho em que se reflete um mundo perfeitamente subsistente em si.1 O realismo afirma primeiro um mundo que não seria o termo do encontro que constitui o conhecimento, para em seguida assegurar que a consciência está sujeita de um modo completamente passivo à influência da realidade. O mundo é a omnitudo realitatis (realidade total), puramente um espetáculo para a consciência, que o examina com um olhar sobranceiro (regard survolant), sem ponto de vista, sem se encontrar em certa situação, sem estar ela mesma envolvida no mundo.

Assim, no realismo se realça exclusivamente a realidade do mundo, ao contrário do idealismo, para o qual toda realidade se dissolve sempre mais. Entretanto, nem o realismo lançou uma ponte entre a consciência e o mundo. De fato, seguindo Locke, todos os realistas ensinam que o objeto próprio e direto da consciência perceptiva são as próprias impressões perceptivas. Também seria inconcebível que os realistas não pensassem assim, porque a consciência aparece no realismo como separada, isolada da objetividade, sendo, contudo, o conhecimento chamado objetivo. Isso quer dizer que o conhecimento coincide com a realidade isolada do sujeito cognoscente. Para isso, porém, requer-se certa possessão da realidade pelo sujeito. Mas como é possível a posse de uma realidade distinta daquele que conhece ?2 A realidade, com efeito, não está entitativamente, em sua natureza física, no cognoscente. Não obstante, há nele uma imagem representada,3 uma species impressa, gravada pela realidade física e constituindo no sujeito, como imitação ou duplicata da realidade-em-si, o objeto próprio e direto do conhecimento.33 Jamais conheço, portanto, uma cadeira, uma casa ou uma planta, mas só a impressão-cadeira, a impressão-casa, a impressão-planta. O realismo admite dogmaticamente, sem base, de um lado a existência do mundo, e, de outro lado, uma consciência passiva, fechada em si mesma. Não há, pois, ponte alguma entre a consciência e o mundo.


  1. “… o realismo tenta explicar o conhecimento por uma ação do mundo sobre a substância pensante…” Sartre, L’Être et le Néant, p. 277. 

  2. “É primeiramente o sensível, o percebido mesmo, que se instala nas funções de coisa extramental, e o problema é, pois, compreender como uma duplicata ou imitação do real é suscitada no corpo e, depois, no pensamento”. Merleau-Ponty, La Structure du Comportement, p. 205. 

  3. “Uma vez que um quadro nos faz pensar no que representa, supor-se-á, com fundamento no caso privilegiado dos aparelhos visuais, que os sentidos recebem das coisas reais ‘pequenos quadros’ que excitam a alma a percebê-las. Os ‘simulacros’ epicureus, as ‘espécies intencionais’ e ‘todas essas pequenas imagens que volteiam pelo ar’, trazendo ao corpo o aspecto sensível das coisas, não fazem senão transportar em termos de explicação causal e de operações reais a presença ideal da coisa ao sujeito percipiente, a qual, como vimos, é uma evidência para a consciência ingênua”. Merleau-Ponty, La Structure du Comportement, p. 205.