A temporalidade é agora a unidade articulada do por-vir, do ter-sido e do presentar, que são, assim, dados a pensar juntos: “O fenômeno que oferece tal unidade de um por-vir que torna presente no processo de ter-sido, chamamo-lo temporalidade” [SZ:326]. (119)
Podemos ver em que sentido essa espécie de dedução de uma pela outra das três modalidades temporais responde ao conceito de possibilitação mencionado anteriormente: “A temporalidade possibilita (ermöglicht) a unidade da existência, da factualidade e da queda” (328), Esse novo estatuto do “tornar-possível” exprime-se na substituição do substantivo pelo verbo: “A temporalidade não ‘é’ de modo algum um ente. Ela não é, mas temporaliza-se” (ibid.).1
Se a invisibilidade do tempo em seu conjunto já não é um obstáculo ao pensamento, desde que pensemos a possibilidade como possibilitação e a temporalidade como temporalização, o que permanece tão opaco em Heidegger quanto em Agostinho é a triplicidade interna a essa integralidade estrutural: as expressões adverbiais — o “ad” do por-vir, o “já” do ter-sido, o “junto a” da preocupação — assinalam no próprio nível da linguagem a dispersão que mina por dentro a articulação unitária. O problema agostiniano do triplo presente encontra-se simplesmente transferido para a temporalização em seu conjunto. Ao que parece, só podemos apontar para esse problema intratável, designá-lo com o termo grego ekstatikon e declarar: “A temporalidade é o ‘fora-de-si’ (Ausser-sich) originário, em si e para si”2. (329).
É preciso, ao mesmo tempo, corrigir a ideia da unidade estrutural do tempo pela da diferença de seus ek-stases. Essa diferenciação é intrinsecamente implicada pela temporalização, na medida em que esta é um processo que agrupa dispersando.3 A passagem do futuro ao passado e ao presente é ao mesmo tempo unificação e diversificação. Eis aí reintroduzido de uma vez o enigma da distentio animi, embora o presente já não seja seu suporte. E por razões vizinhas. Agostinho, lembremo-nos, estava preocupado em dar conta do caráter extensível do tempo, que nos faz falar de tempo curto e tempo longo. Para Heidegger também, o que ele considera a concepção vulgar, a saber, a sucessão de “agoras” exteriores uns aos outros, encontra um aliado secreto na exteriorização primordial de que exprime apenas o nivelamento: o nivelamento é nivelamento desse traço de exterioridade. Desse nivelamento, só poderemos tratar com vagar depois de termos desdobrado os níveis hierárquicos de temporalização: temporalidade, (120) historialidade, intratemporalidade, na medida em que o que ele afeta de modo privilegiado é o modo mais longinquamente derivado, a intratemporalidade. No entanto, é lícito perceber no fora-de-si (Ausssersich) da temporalidade primordial o princípio de todas as formas ulteriores de exteriorização e do nivelamento que o afetarão. Coloca-se, então, a questão de saber se a derivação dos modos menos autênticos não dissimula a circularidade de toda a análise. Já não se anuncia o tempo derivado no fora-de-si da temporalidade originária?
[RICOEUR, P. Temps et récit III. Le temps raconté. Paris: Éd. du Seuil, 1985]- Se podemos dizer que a temporalidade é assim pensada como temporalização, a relação última entre Zeit e Sein, em compensação, permanece em suspenso enquanto a ideia do ser não for esclarecida. Ora, essa lacuna não será preenchida em Ser e tempo. A despeito desse inacabamento, podemos creditar a Heidegger a solução dada a uma das aporias maiores do problema do tempo, a saber, sua invisibilidade como totalidade única.[↩]
- “A essência da temporalidade é a temporalização na unidade dos ek-stases”[↩]
- Uma “igual originariedade” (Gleichursprunglichkeit) (329) dos três ek-stases resulta da diferença entre os modos de temporalização: “No interior dessa equi-originariedade, os modos de temporalização são diferentes. E a diferenciação consiste no fato de que a temporalização pode diferenciar-se primariamente a partir dos diferentes ek-stases” (329).[↩]