A consciência dá “algo” a compreender, ela abre. Dessa caracterização formal surge a indicação de se reconduzir o fenômeno para a abertura da presença [Dasein]. Essa constituição fundamental daquele ente que nós mesmos somos constitui-se de disposição, compreensão, decadência e fala. A análise mais profunda da consciência a desvela como apelo. O apelo é um modo de fala. O apelo da consciência possui o caráter de INTERPELAÇÃO da presença [Dasein] para o seu poder-ser-si-mesmo mais próprio e isso no modo de fazer apelo para o seu ser e estar em dívida mais próprio. STMSC: §54
Para que perspectiva se interpela? Para o si-mesmo próprio. E não para aquilo que vale na convivência pública, não para o que ela pode ou de que se ocupa e, sobretudo, não para aquilo que a toma ou pelo que se engajou e se deixou arrastar. Compreendida mundanamente, a presença [Dasein] é ultrapassada, nessa INTERPELAÇÃO, naquilo que ela é para si e para os outros. A INTERPELAÇÃO para si-mesmo não toma o menor conhecimento de tudo isso. Porque apenas o si-mesmo do impessoalmente-si-mesmo é interpelado e forçado a escutar, o impessoal sucumbe em si mesmo. Que o apelo ultrapassa o impessoal e a interpretação pública da presença [Dasein], isso não significa, absolutamente, que o apelo também não o atinja. Justamente no ultrapassar, o apelo empurra o impessoal, absorvido nas considerações públicas, para a insignificância. O si-mesmo, porém, é levado pelo apelo para si mesmo, ao ser privado, na INTERPELAÇÃO, desse refúgio e esconderijo. STMSC: §56
O impessoalmente si mesmo é interpelado para o si-mesmo. Esse, contudo, não é o si-mesmo que se pode tornar “objeto” de avaliação, nem o si-mesmo que se empenha com curiosidade e sem descanso no exame de sua “vida interior” e nem tampouco o si-mesmo de uma cupidez “analítica” de olhar os estados da alma e suas profundezas. A INTERPELAÇÃO do si-mesmo no impessoalmente si mesmo não o leva para um interior a fim de se trancar para o “mundo exterior”. O apelo passa por cima de tudo isso e desfaz tudo isso para interpelar unicamente o si-mesmo que, por sua vez, não é senão no modo de ser-no-mundo. STMSC: §56
Devemos ater-nos ao seguinte: o apelo característico da consciência é uma INTERPELAÇÃO do impessoalmente-si-mesmo para o seu si-mesmo; tal INTERPELAÇÃO é fazer apelo ao si-mesmo para seu poder-ser si-mesmo e, assim, uma apelação da presença [Dasein] para suas possibilidades. STMSC: §56
A interpretação precedente do quem apela nada mais fez do que acompanhar o caráter fenomenal do apelo. A “força” da consciência não se viu diminuída nem transformada em algo “meramente subjetivo”. Ao contrário, só então liberou-se o apelo em seu caráter inexorável e unívoco. A “objetividade” da INTERPELAÇÃO só se legitima enquanto a interpretação permite que se conserve sua “subjetividade”, a qual certamente recusa o predomínio do impessoalmente-si-mesmo. STMSC: §57
Com relação à interpretação da consciência enquanto apelo da cura, pode-se, contudo, levantar as seguintes questões: Uma interpretação da consciência tão distante da “experiência natural” pode ser consistente? Como a consciência há de fazer apelo ao poder-ser mais próprio se, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela apenas censura e adverte? Será que a consciência fala somente de forma indeterminada e vazia sobre um poder-ser mais próprio e não se manifesta com determinação e concretude acerca das falhas e omissões ocorridas e cometidas? Essa INTERPELAÇÃO afirmada nasce da “boa” ou da “má” consciência? Será que a consciência propicia algo positivo ou só funciona criticamente? STMSC: §57
A fim de se apreender fenomenalmente o que se ouviu na compreensão do interpelar é preciso retornar, de forma renovada, à INTERPELAÇÃO. A INTERPELAÇÃO do impessoalmente-si-mesmo significa fazer apelo ao si-mesmo mais próprio para assumir o seu poder-ser e isso enquanto presença [Dasein], ou seja, enquanto ser-no-mundo das ocupações e ser-com os outros. A interpretação existencial daquilo para que o apelo faz apelo não pode pretender delimitar nenhuma possibilidade concreta e singular de existência, desde que suas possibilidades e tarefas metodológicas sejam devidamente compreendidas. Não se pode e nem se quer fixar no apelado o que sempre se dá, existenciariamente, em cada presença [Dasein], mas sim aquilo que pertence à condição existencial de possibilidade do poder-ser fático e existenciário. STMSC: §58
O apelo é apelo da cura. O ser e estar em dívida constitui o ser que chamamos de cura. Na estranheza, a presença [Dasein] se encontra originariamente reunida consigo mesma. A estranheza coloca esse ente diante de seu nada inconfundível, o qual pertence à possibilidade de seu poder-ser mais próprio. Na medida em que, para a presença [Dasein] enquanto cura, o que está em jogo é o seu ser, a partir da estranheza, ela faz apelo a si mesma, enquanto faticamente decadente no impessoal, para assumir o seu poder-ser. A INTERPELAÇÃO é uma reclamação apeladora: a-pelar a possibilidade de, em existindo, assumir, em si mesmo, o ente-lançado que é; re-clamar para o estar-lançado de modo a se compreender como fundamento do nada a ser assumido na existência. A reclamação apeladora da consciência oferece para a presença [Dasein] a compreensão de que ela, na possibilidade de seu ser, é o fundamento nulo de seu projeto nulo, devendo recuperar-se para si mesma da perdição no impessoal, ou seja, de que ela é e está em dívida. STMSC: §58
A escuta legítima da INTERPELAÇÃO equivale a um compreender de si em seu poder-ser mais próprio, ou seja, em se projetando para o seu poder-ser e estar em dívida mais próprio. Permitir a apelação desta possibilidade numa compreensão implica o tornar-se livre da presença [Dasein] para o apelo: a prontidão para poder ser interpelada. Compreendendo o apelo, a presença [Dasein] se faz escuta para a sua possibilidade de existência mais própria. Ela escolheu a si mesma. STMSC: §58
Com essa escolha, a presença [Dasein] possibilita para si o seu ser e estar em dívida mais próprio, fechado para o impessoalmente-si-mesmo. A compreensão do impessoal apenas conhece satisfação e insatisfação no que concerne às regras manejáveis e às normas públicas. Violações destas são debitadas e exigidas quitações. O impessoal foge sorrateiramente do ser e estar em dívida mais próprio para tanto mais alto falar de erros e faltas. Na INTERPELAÇÃO, porém, o impessoalmente-si-mesmo é interpelado no ser e estar em dívida mais próprio de si-mesmo. A compreensão do apelo é a escolha não da consciência que, como tal, não pode ser escolhida. Escolhido é o ter consciência enquanto ser-livre para o ser e estar em dívida mais próprio. Compreender a INTERPELAÇÃO significa: querer-ter-consciência. STMSC: §58
O terceiro momento essencial da abertura é a fala. Entendido como fala originária da presença [Dasein], o apelo exclui toda e qualquer fala contrária, algo no sentido de uma discussão negociadora do que diz a consciência. A escuta compreensiva do apelo recusa a fala contrária não porque essa escuta fosse atropelada por um “poder obscuro” e repressor mas por se apropriar, sem encobrimentos, do conteúdo do apelo. O apelo apresenta o insistente ser e estar em dívida, retirando, assim, o si-mesmo da algazarra da compreensão impessoal. Por isso a silenciosidade é o modo de articulação da fala que pertence ao querer-ter-consciência. Caracterizou-se o silêncio como possibilidade essencial da fala. Aquele que, silenciando, quer dar a compreender, deve “ter algo a dizer”. Na INTERPELAÇÃO, a presença [Dasein] dá a compreender o seu poder-ser mais próprio. Por isso, o apelo é um silêncio. A fala da consciência nunca chega a articular-se. A consciência só apela em silêncio, ou seja, o apelo provém da mudez da estranheza e reclama a presença [Dasein] apelada para aquietar-se na quietude de si mesma. É só na silenciosidade, portanto, que o querer-ter-consciência compreende, adequadamente, essa fala silenciosa. A silenciosidade retira a palavra da falação e da compreensão impessoal. STMSC: §60
Com a decisão conquistamos, agora, a verdade mais originária da presença [Dasein] porque a mais própria. A abertura do pre [das Da] abre, cada vez de modo igualmente originário, a totalidade do ser-no-mundo, ou seja, o mundo, o ser-em e o si-mesmo que esse ente é enquanto “eu sou”. Com a abertura do mundo, sempre já se descobriram entes intramundanos. A descoberta do que está à mão e do que é simplesmente dado funda-se na abertura de mundo; pois a liberação do todo conjuntural de qualquer manual exige um pre-compreender [Vorverstehen] da significância. Compreendendo-a, a presença [Dasein] ocupada numa circunvisão remete para o que vem ao encontro da mão. O compreender da significância como abertura de cada mundo funda-se, assim, no compreender em virtude de… a que está remetida toda descoberta da totalidade conjuntural. O abrigo, a manutenção, o abandono de suas funções são possibilidades constantes e imediatas da presença [Dasein] para as quais esse ente, em que está em jogo seu ser, sempre já se projetou. Lançada em seu “pre” [das Da], a presença [Dasein] já está sempre faticamente remetida a um “mundo” determinado, o seu. Junto com ele, os projetos são faticamente conduzidos da perdição nas ocupações para o impessoal. Essa perdição pode ser interpelada pelo próprio de cada presença [Dasein], e a INTERPELAÇÃO pode ser compreendida no modo da decisão. Essa abertura própria, porém, modifica, de forma igualmente originária, a descoberta do “mundo” e a abertura da co-presença [Dasein] dos outros nela fundada. Quanto a seu “conteúdo”, o “mundo” à mão não se torna um outro mundo, o círculo dos outros não se modifica, embora, agora, o ser-para o que está à mão, no modo de compreender e ocupar-se, e o ser-com da preocupação com os outros sejam determinados a partir de seu poder-ser mais próprio. STMSC: §60
Na INTERPELAÇÃO, o apelo da consciência ultrapassa todo prestígio e poder “mundanos” da presença [Dasein]. O apelo singulariza, de forma inexorável, a presença [Dasein] em seu poder-ser e estar em dívida, dispondo-a a ser propriamente aquilo que é. STMSC: §62