- Carlos Alberto Medeiros
- Original
Carlos Alberto Medeiros
“UM TSUNAMI MATOU mais de 200 mil pessoas na Indonésia!” “Um paparazzo clicou a vagina de Britney Spears!” “Finalmente percebi que tenho de deixar tudo para trás e ajudá-lo!” “A brutal conquista militar sacudiu o país inteiro!” “O povo venceu! O ditador fugiu!” “Como é possível haver uma coisa tão bela quanto a última sonata para piano de Beethoven?”
Todas essas afirmações se referem àquilo que pelo menos alguns de nós consideraríamos ser um acontecimento – uma noção anfíbia com mais de cinquenta tons de cinza. Um “acontecimento” pode significar um desastre natural devastador ou o último escândalo protagonizado por uma celebridade, o triunfo do povo ou uma brutal transformação política, uma experiência intensa proporcionada por uma obra de arte ou por uma decisão de foro íntimo. Dadas todas essas variações, não existe outra forma de impor certa ordem ao dilema da definição senão assumir o risco, embarcar e começar nossa jornada com uma definição aproximada de acontecimento.
Testemunha ocular do crime (4.50 to Paddington , no título original), de Agatha Christie, tem início no meio de uma viagem de trem da Escócia para Londres, em que Elspeth McGillicuddy, a caminho de uma visita a sua velha amiga Jane Marple, vê uma mulher sendo estrangulada no compartimento de outro trem que está passando (o das 4h50 para Paddington). Tudo ocorre muito rapidamente e a visão dela não é clara, de modo que a polícia não leva muito a sério seu depoimento, pois não há evidências de que tenha ocorrido um crime; só Miss Marple acredita em seu relato e começa a investigar. Eis um acontecimento em seu estado mais puro e essencial: algo chocante, fora do normal, que parece acontecer subitamente e que interrompe o fluxo natural das coisas; algo que surge aparentemente a partir do nada, sem causas discerníveis, uma manifestação destituída de algo sólido como alicerce.
Existe num acontecimento, por definição, algo de “milagroso”, dos milagres de nossas vidas cotidianas até aqueles das esferas mais sublimes, incluindo a do divino. A natureza acontecimental da cristandade surge do fato de que ser cristão exige a crença num acontecimento singular – a morte e a ressurreição de Cristo. Talvez ainda mais fundamental seja a relação circular entre a crença e suas razões: não posso dizer que acredito em Cristo por ter sido convencido pelas razões que sustentam essa crença; só quando acredito é que posso compreender tais razões. A mesma relação circular existe no amor: não me apaixono por motivos precisos (os lábios dela, seu sorriso…) – é por já estar apaixonado que seus lábios etc. me atraem. É por isso que o amor, também, é acontecimental. Ele é a manifestação de uma estrutura circular em que o efeito acontecimental determina retroativamente suas causas ou razões. 1 E o mesmo vale para um acontecimento político como os protestos contínuos na praça Tahrir, no Cairo, que derrubaram o regime de Mubarak: pode-se facilmente explicá-los como o resultado de impasses específicos da sociedade egípcia (o desemprego, uma juventude educada sem perspectivas claras etc.), mas, de alguma forma, nenhum deles pode realmente elucidar a energia sinérgica que deu origem ao que se passou.
Do mesmo modo, o surgimento de uma nova forma de arte é um acontecimento. Tomemos o exemplo do film noir . Em sua pormenorizada análise, Marc Vernet 2 demonstra que todas as principais características que constituem a definição comum de film noir (iluminação chiaroscuro , câmeras em ângulos tortos, o universo paranoico do romance policial noir com a corrupção elevada a uma característica metafísica personificada na femme fatale ) já estavam presentes nas películas de Hollywood. Mas o enigma que permanece é a misteriosa eficiência e persistência da noção de noir : quanto mais certo está Vernet no nível dos fatos, quanto mais oferece causas históricas, mais enigmáticas se tornam a força e a longevidade extraordinárias dessa noção “ilusória” de noir – a noção que há décadas tem assombrado nossa imaginação.
Numa primeira abordagem, um acontecimento é, assim, o efeito que parece exceder suas causas – e o espaço de um acontecimento é aquele que é aberto pela brecha que separa o efeito das causas. Já com essa definição aproximada, vemo-nos no próprio cerne da filosofia, dado que a causalidade é um dos problemas básicos com que ela se confronta: todas as coisas estão conectadas com vínculos causais? Tudo que existe deve sustentar-se em razões suficientes? Ou será que existem coisas que, de alguma forma, acontecem a partir do nada? Como pode então a filosofia ajudar-nos a determinar o que é um acontecimento – uma ocorrência que não se sustenta em razões suficientes – e como ele é possível?