Zarader (2000:201-202) – kairos

Vimos-o claramente no caso do kairos. A experiência cujo texto de São Paulo testemunha, marca solidamente a obra heideggeriana; é aquilo que é geralmente reconhecido. Resta saber como interpretá-lo. Lehmann que se dedica a isso, coloca à partida a questão certa: «Visto as repercussões no Sein und Zeit da experiência da própria história do cristianismo original, será que a surpreendente e indisponível estrutura do kairos ressurge na Analítica existencial-transcendental, ou será que os momentos estão nele reprimidos1?». A esta questão (limitada ao único campo do Sein und Zeit), Lehmann só fornece (talvez por essa mesma razão) uma resposta parcial. Consiste em dizer que o «Sein und Zeit mantém em aberto, na sua estrutura formal, o local aberto pelo aparecimento do kairos»2. (201)

Uma resposta deste tipo não está enunciada. É verdade que a Analítica existencial permite dar conta da possibilidade formal do kairos; desenvolve uma estrutura onde ele pode encontrar o seu lugar, e a partir da qual poderá eventualmente receber (mas já não é do alcance da ontologia) um conteúdo cristão. É a razão pela qual Lehmann acrescenta logo: «Aquilo que ocorre “naquilo” do existente há muito preparado, isso, o pensamento tem de o deixar livre3.» «Liberdade» do conteúdo, mas elevação do mesmo à sua condição de possibilidade: esta perspectiva adapta-se perfeitamente à intenção de Heidegger, ou seja à ordem de leitura que indica. E a maior parte dos seus leitores, incluindo os mais críticos, seguem-no finalmente por esta via, nem que fosse para a censurar: Heidegger actuava na libertação de uma estrutura ontológica (ou Neutra) primordial, considerada antes do mais um preenchimento por parte de um conteúdo ôntico (ou ético).

Ora o impacto do kairos vai muito mais longe do que aquilo que esta interpretação quereria. E toda a concepção heideggeriana do tempo — e por aí, do próprio ser — que resta marcada com isso, tal como o veremos mais longamente nas páginas seguintes4. Não basta então dizer que Heidegger entende a estrutura essencial do Dasein de forma a que uma experiência como a do kairos lá possa encontrar a sua condição de possibilidade. Temos de acrescentar que o pensamento heideggeriano utiliza o kairos para repensar na própria essência do tempo, que tal como já o vimos, não é uma simples forma, mas sim uma determinação plenária do conteúdo.

[ZARADER, Marlène. A Dívida Impensada. Heidegger e a Herança Hebraica. Lisboa: Instituto Piaget, 2000]
  1. K. Lehamnn, «Christliche Geschichtserfahrung…», art. citado, p. 149.[]
  2. Ibid.[]
  3. Ibid., p. 150.[]
  4. Cf. infra, pp. 177-180.[]