Zarader (2000:195-197) – kairos

Voltemos então as duas aulas (GA60) de Fribourg sobre as quais detemos informações suficientemente conscientes. Quais são os conceitos do Novo Testamento que interessam então Heidegger, e no que se torna esse interesse na obra posterior?

A maior parte da aula de 1920 é consagrada a meditar duas epístolas de São Paulo: a Primeira aos Tessalónicos e a Segunda aos Coríntios. Da primeira (cujos capítulos 4, 13-18 e 5, 1-11 comenta), Heidegger retém essencialmente o conceito de kairos. Relembremos o contexto em que surge. A questão tratada por São Paulo é a da vinda do Senhor, a Parusia. Após ter expresso o seu desejo de não (195) deixar os discípulos na «ignorância» (4,13), São Paulo acrescenta no entanto que não têm qualquer necessidade de ser informados «tempos e momentos» (5,1). Heidegger faz notar1 que São Paulo não dá qualquer indicação temporal em troca, nem sequer qualquer indicação concreta. Sublinha apenas o modo da sua vinda — a instantaneidade — tal como testemunha o versículo 2: «O Senhor virá como um ladrão na noite.» Nesse carácter repentino da vinda do Senhor corresponde à vigília enquanto comportamento humano: «Vós, irmãos, não estais nas trevas, para que esse dia vos surpreenda como um ladrão. Sim, são os filhos do dia (…). Não dormimos então como os outros, mas vigiamos e sejamos sóbrios.» (5,5-8).

É esse par formado pela instantaneidade (daquilo que vem) e a vigília (de quem espera) que interessa Heidegger. Vê de facto nele uma determinação específica — «kairológica» e não «cronológica» — do tempo, ao mesmo tempo que uma determinação como vigilância e disponibilidade.

Consideremos primeiro a determinação no tempo em que se pode libertar da experiência pauliniana. Primeiro, insistir na instantaneidade, é caracterizar o acontecimento temporal pela forma como se entrega sobretudo pelo seu conteúdo. Diferença que Heidegger escava até a oposição: «Se o homem tenta fixar através de avaliações cronológicas ou caracterizações que dizem respeito ao conteúdo do acontecimento de que não somos mestres, que surge subitamente e sobre o qual se baseia a sua vida, constitui como garantido e disponível aquilo que tem de definir a sua vida sob forma daquilo que nunca está à nossa disposição2

De acordo com esta instantaneidade que equivale a um suceder da essência imprevisível, o presente encontra-se colocado «sob a ameaça que lhe vem do futuro»3. É a partir do futuro, desconhecido e indizível que surge qualquer acontecimento para surpreender o presente: «O kairos não pode ser esperado (erwartet) nem agarrado (ergeiffen), porque o sério da imperceptibilidade seria quebrada na representação de um presente prolongado no futuro, que no fundo já conhecemos4

Em terceiro lugar, por conseguinte, esta ameaça vinda do futuro faz do presente o instante da decisão, tal como da decisão, o assunto do instante. «Tudo» se joga nele5, apesar de nada se poder calcular sem ele. O kairos quando «que se coloca na ponta da lâmina, (…) (196) frente à decisão»3 assina então o insucesso da representação e do domínio: «Um pensamento que dissimula a relação no futuro indisponível calculando o tempo e destinando-se a conteúdos “objectivos” não escapa à perdição6

Esta experiência kairológica do tempo, que exclui qualquer antecipação tal como qualquer apropriação induz uma determinação da existência — que Heidegger, nessa época ainda chama «vida» — enquanto abertura e resolução. Só aquele que estiver constantemente «disposto» para o acontecimento temporal imprevisível pode receber, no encontro da decisão, aquilo que vem ao seu encontro. As duas determinações são naturalmente indissociáveis: «Se o kairos pode surgir de repente, então a resolução do homem para cada instante é necessária7.» Uma vez a abertura resolvida, o homem não vive apenas no tempo; vive de alguma forma, o próprio tempo, experimenta a sua indisponível verdade8.

A mesma perspectiva encontra-se desenvolvida na aula de 1921 consagrada a Santo Agostinho. A vida feliz é concebida por ele, não à luz daquilo que contém, mas segundo a forma como se cumpre. É esse feito que retém a atenção de Heidegger, e cujo duplo carácter sublinha histórico e não objectivável — não objectivável, precisamente por ser histórico, ou seja temporal9.

  1. Cf. O. Pöggeler, La Pensée de M. Heidegger, op. cit., p. 48; K. Lehamnn, «Christliche Geschichtserfahrung…» art. citado, p. 143. Para esta dupla referência, cf. supra, p. 131, n.° 3.[]
  2. O. Pöggeler, La Pensée de M. Heidegger, op. cit., p. 48. Cf. tal como K. Lehamnn «Christliche Geschichtserfahrung…» art. citado, p. 143: «Qualquer tentativa para objectivar, mesmo provisoriamente a vinda do kairos, transforma o enigma da exaltação numa determinação desse conteúdo.»[]
  3. O. Pöggeler, La Pensée de M. Heidegger, op. cit., p. 48.[][]
  4. K. Lehamnn «Christliche Geschichtserfahrung…» art. citado, p. 143.[]
  5. Ibid.[]
  6. Ibid., p. 49.[]
  7. K. Lehamnn «Christliche Geschichtserfahrung…» art. citado, p. 144.[]
  8. Cf. O. Pöggeler, La Pensée de M. Heidegger, op. cit., p. 49;. K. Lehamnn «Christliche Geschichtserfahrung…» art. citado, p. 144.[]
  9. Cf. O. Pöggeler, La Pensée de M. Heidegger, op. cit., p. 50.[]