Vallin (PM:35-37) – metafísica

A metafísica como especulação sistemática sobre o “ser enquanto ser” e as “causas primeiras” começa com Aristóteles, e toda especulação filosófica ocidental nos parece trazer a marca dessa origem na medida em que se pode afirmar que a revolta do Estagirita contra a transcendência das Ideias e da reminiscência platônica resultou na identificação da metafísica com a ontologia. Esta identificação parece-nos carregada de significados e consequências que teremos de elucidar cuidadosamente. Por enquanto, basta apontar os mais importantes:

1° A redução da metafísica à ontologia implica uma concepção essencialmente abstrata e teórica do conhecimento metafísico, bem como o domínio exclusivo e massivo do princípio da não-contradição. A metafísica como ontologia é apenas uma especulação sobre o ser, alheia à “experiência espiritual”. No máximo, ela se sobrepõe a ela de maneira mais ou menos acidental e artificial. A natureza determinada do primeiro Princípio, tal como a ontologia o concebe, implica uma limitação, isto é, uma negação da universalidade principiológica. Essa limitação levará a distinções irredutíveis dentro do próprio Princípio, bem como entre o Princípio e a manifestação 1. O caráter teórico e abstrato do conhecimento do ser concebido pela ontologia clássica segundo Aristóteles está intimamente ligado à natureza limitada do ser assim concebido. A hegemonia do princípio da não contradição é apenas outra forma dessa mesma limitação na ordem dos princípios, que se traduz no plano do conhecimento por uma confusão entre o Intelecto e a razão. A intuição intelectual à qual a ontologia clássica acredita poder apelar move-se no plano do entendimento humano como tal, isto é, no plano de uma inteligência dianoética cuja intuição não está em questão, dela não faz mais do que um momento ou um aspecto. A ontologia que repousa na autonomia implícita de uma razão humana posta como radicalmente distinta da Inteligência divina já está carregada de um humanismo que se desenvolverá plenamente com Kant. A natureza limitada do Princípio reflete, por assim dizer, na própria natureza do conhecimento que a inteligência humana pode ter dele 2.

2° A redução da metafísica à ontologia é acompanhada por uma concepção mais “cosmológica” do que “metafísica” do Princípio. Essa concepção se traduz essencialmente na aplicação generalizada do termo “substância” a realidades que são postas como absolutamente ou relativamente principiológicas. Sem dúvida, essa noção de substância implica uma permanência atemporal que simboliza, aos olhos de um crítico temporalista, o dogmatismo metafísico. Mas é fácil perceber que essa permanência é concebida em um estilo positivamente existencial que valoriza a multiplicidade cosmológica e o dinamismo produtivo que a engendra. A filosofia primeira de Aristóteles tem, como sabemos, um duplo objetivo: 1) o estudo do ser enquanto ser, que de fato se reduz ao das categorias do mundo sensível; 2) a teologia, que se reduz à meditação sobre Deus concebido como Indivíduo Supremo, ou seja, sobre o aspecto “pessoal” do Princípio. A ontologia clássica do Ocidente, dependente de Aristóteles, nunca conseguirá ultrapassar esse aspecto pessoal da divindade, que poderia, aliás, assumir formas mais ou menos abstratas 3. O Ser Puro é concebido como a Causa Primeira, que dá conta do múltiplo que potencialmente contém. Sua transcendência abstrata é correlativa a uma imanência não menos abstrata. Em outras palavras, o Ser concebido como Causa ou como Autoconsciência envolve uma limitação que leva a ontologia a conceber, de fato, se não em teoria, o Princípio em função da existência do mundo.

  1. A transcendência abstrata de Deus como causa final de Aristóteles junta-se à transcendência abstrata do Deus criador de São Tomás: em ambos “Deus está separado do mundo”, mas o mundo também está separado de Deus, quer dizer posto realmente fora de seu Princípio.[↩]
  2. E às vezes sobre a própria natureza do conhecimento que a ontologia atribui ao próprio Princípio. Assim, a distinção entre o entendimento e a vontade divina no quadro de uma ontologia criacionista (Santo Tomás Leibnitz) pressupõe uma distinção eminentemente limitante e antimetafísica entre o possível concebido pelo entendimento e o real posto fora dele pelo fiat da vontade criadora.[↩]
  3. Assim, o Deus “puro pensamento” de Aristóteles é diferente do Deus criador de São Tomás ou da Substância de Spinoza. Mas estes são três aspectos diferentes da mesma redução da metafísica à ontologia e da mesma valorização da existência cosmológica que aqui nada mais é do que um reflexo ilusório, embora seja da ordem dos “modos” (em Spinoza), e não da a ordem das “substâncias” (como em Aristóteles ou São Tomás).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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