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Roberta de Monticelli (1952)
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(Monticelli1997:207-208) Deveríamos ter usado, em vez de “sofrer”, a palavra que o Petit Robert considera arcaica – “padecer” – que expressa com muito mais abrangência um dos dois traços relevantes das vivências originárias do ser próprio: a afetividade. “Originárias” no sentido de que estas vivências são a fonte (origem) do conteúdo intuitivo da ideia de…
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(RMAP:239-242) A camada do si mesmo vivenciada nos “sentimentos vitais” é mais profunda, nela se anuncia um estado vital próprio: o estado “físico” — que são os modos de “se sentir no corpo”, como a fadiga, a frescura, o bem-estar, o mal-estar; e o estado “psíquico” — que são os humores ou “estados de alma”,…
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(RMAP:238-239) O que “se vive” no domínio dos sentimentos sensoriais — prazer e dor “físicos” inerentes às sensações — é a “superfície” ou o “exterior” do ser próprio: as partes do corpo onde esses sentimentos sensoriais estão localizados, mas, de maneira mais geral, as [239] partes do corpo que estão envolvidas no exercício das funções…
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(RMAP:86-88) Em alemão, “consciência” é traduzida como Bewusstsein. Esse termo, embora seja um substantivo, mantém a forma predicativa do particípio, como se disséssemos “o ser” — o predicado em questão sendo o do objeto que nos é presente, em vez do sujeito que dele tem consciência 1. Esse ser presente (bewusst) de uma coisa corresponde,…
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(RMAP:151-155) Todas as manifestações de uma pessoa, como dissemos, não são “pessoais”: várias manifestações exibem uma identidade qualitativa substancial de pessoa para pessoa. Essa é mais uma dessas distinções que saltam aos olhos assim que nos ocorre procurá-las. Os efeitos de uma má memória, por exemplo, ou de uma audição ruim, são idênticos em todos…
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(RMAP:221-224) No início desta meditação, destacamos a analogia entre a percepção psicológica dos outros e a de si mesmo. São experiências do mesmo tipo, da subjetividade propriamente dita. Mas são experiências fenomenologicamente, “noeticamente” diferentes. São precisamente dois modos diferentes de “preenchimento” intuitivo da mesma ideia. Eu vivo a mim mesmo, mas apenas “re”-vivo o Erleben…
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(RMAP:243-244) É numa camada mais profunda do sentir, a dos sentimentos dos valores, que cada um encontra a si mesmo. É preciso medir a diferença entre esses sentimentos que se referem a bens distintos de si mesmo e os estados em que nos encontramos. É necessário, por exemplo, distinguir o fato de sentir dor ou…
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(RMAP:230-235) Observar, por exemplo, uma cor, uma forma, a consistência de um corpo para registrar esses dados antes de uma experimentação física, tudo isso normalmente não é fazer uma experiência de si mesmo — a não ser acidentalmente, quando se descobre, por exemplo, que se é daltônico ou míope, etc. Executar um cálculo também não…
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(RMAP:226-228) […] Consideramos o rosto — no sentido amplo — das pessoas: a presença pessoal, a subjetividade que vemos de fora. Não aquela, no entanto, que se vive de dentro. Pelo menos ainda não. A empatia percebe uma vida de fonte, mas não é essa vida de fonte: sente a alegria e a dor do…
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(RMAP:217-221) A empatia é um ato que capta um indivíduo como um outro eu. Em resumo, “vemos” os outros como nossos semelhantes. É necessário refletir sobre o significado desse “como”. Ao fazê-lo, responderemos à outra questão que levantamos: após a questão da relação entre a percepção psicológica e a percepção sensorial, a questão da relação…
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(RMAP:228-230) Cada aspecto da vida (do “viver” no sentido intransitivo) não é necessariamente um aspecto da experiência vivida (Erleben, “viver” no sentido transitivo). A digestão, por exemplo, não é uma experiência vivida, desde que ocorra sem desconforto ou prazer. Toda a vida não é necessariamente vivida, todo o Leben não é necessariamente Erleben. Em certo…
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(RMAP:225-226) […] Sem dúvida, há indivíduos que são dados à percepção. Como Jacques, Frédéric ou Théodore, que acabei de ver todos os três. No entanto, sua individualidade não é visível: vemos apenas que eles a possuem. Podemos vislumbrá-la em sua fisionomia, “única em seu gênero”: ou seja, distinta mesmo na ausência de termos de comparação.…
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(RMAP:214-217) Compreender uma personalidade que viveu em outros tempos através dos vestígios que restaram, por exemplo. Certamente, não é apenas a empatia que está em jogo nesse caso – há também um grande trabalho de hipóteses e indução. No entanto, se não houver uma espécie de intuição empática básica, talvez falte o essencial para a…
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(RMAP:209-213) Chegou o momento de examinar a percepção dos outros do lado “noético”. Uma das teses características da fenomenologia é que a experiência do outro é um ato “doador originário”. Uma pessoa nos é imediatamente dada (e não postulada, inferida, projetada) em sua realidade específica, em carne e osso. É justamente um outro eu em…
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(RMAP:203-306) Comecemos então pelo mais simples. Não estamos sempre presentes a nós mesmos, longe disso. Deixemo-nos viver no esquecimento de nós mesmos, como costuma acontecer, e atentemos para o dado da presença do outro. O que se segue é uma descrição desse dado, ou seja, da empatia a parte objecti, ou do lado “noemático” de…
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(RMAP:200-203) […] preencher com conteúdo fenomenológico os dois aspectos que a meditação de ontem nos indicou como características da realidade pessoal: a subjetividade e a individualidade essencial. De fato, se essas duas categorias abarcam respectivamente, por assim dizer, a aparência e a essência, o rosto e a alma do que somos, elas devem conter o…
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(Monticelli1997:208) O outro traço fundamental da noção de autos é aquele que se opõe ao caráter do hetero, manifestando-se na oposição entre autonomia e heteronomia. As vivências que constituem este outro aspecto do ser-sujeito — que “preenchem” este significado fundamental do termo — são as ações através das quais nos experimentamos como causa dos efeitos…
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Tomemos o ponto mais surpreendente da observação de Heidegger, a saber, que o ente no qual o mundo é constituído, embora não seja uma coisa do mundo e, portanto, uma coisa constituída, não é, de modo algum, “absolutamente nada de ente”. Mas onde e quando exatamente Husserl teria afirmado que essa vida real, que a…
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Em primeiro lugar, é verdade que o principal autor de referência para os Grundformen é Heidegger. Mas é igualmente verdade, embora menos óbvio, que o pensamento binswangeriano deve seus insights fundamentais tanto a Heidegger quanto aos fenomenólogos menos conhecidos que o precederam no estudo do significado ontológico da afetividade: essa foi nossa observação inicial. Em…
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A estranha disciplina intelectual que os pitagóricos chamavam de filosofia foi, desde seus primórdios e de forma mais ou menos explícita ao longo de sua história, uma medicina mentis. Ou, pelo menos, muitas vezes ela se apresentava como o verdadeiro studium ad bonam mentem. (MONTICELLI, Roberta de. L’ascèse philosophique: phénoménologie et platonisme. Paris: Vrin, 1997)