Procura-se no Dasein um poder-ser próprio (eigentliches Seinkönnen) que seja atestado na sua possibilidade existenciária (existenziellen Möglichkeit) pelo próprio Dasein. Em primeiro lugar, esse testemunho (Bezeugung) deve ser tal que possa ser encontrado 1. Se o testemunho deve fazer com que o Dasein compreenda a si mesmo em sua possível auto-existência, então ele deve estar enraizado no ser do Dasein. A exposição fenomenológica de um tal testemunho implica, então, mostrar que a sua origem se encontra na constituição do ser (Seinsverfassung) do Dasein.
O testemunho deve fazer-nos compreender um modo de ser-si-mesmo (Selbstseinkönnen). Com a expressão (Ausdruck) “si mesmo” (“Selbst”) respondemos à questão (Frage) pelo quem (Wer) do Dasein [Cf. § 25]. A mesmidade (Selbstheit) do Dasein foi formalmente determinada como uma maneira de existir (Weise zu existieren), isto é, não como um ente que está-aí (vorhandenes Seiendes). Normalmente, eu não sou eu mesmo (ich selbst), mas o impessoalmente-si-mesmo (Man-selbst), o quem do Dasein. O próprio si-mesmo (eigentliche Selbstsein) é determinado como uma modificação existenciária do impessoal (existenzielle Modifikation des Man), uma modificação que tem de ser existencialmente delimitada [cf. § 27]. Em que consiste esta modificação e quais são as condições ontológicas da sua possibilidade (ontologischen Bedingungen ihrer Möglichkeit)?
Com a perdição no impessoal (Verlorenheit in das Man), o poder-ser factual imediato (nächste faktische Seinkönnen) do Dasein já foi sempre decidido: as suas tarefas, as suas regras, os seus padrões de medida, a urgência e o âmbito do seu ocupado e solícito ser-no-mundo. O impessoal (das Man) sempre subtraiu o Dasein do alcance dessas possibilidades de ser (Seinsmöglichkeiten). Além disso, o impessoal encobre mesmo a dispensa que ele em sigilo efetuou da escolha (Wahl) expressa dessas possibilidades. Permanece indeterminado quem é que “propriamente” escolhe. Este ser arrastado sem escolha pelo Ninguém (Niemand), pelo qual o Dasein se enreda na impropriedade (Uneigentlichkeit), só pode ser revertido se o Dasein recuperar explicitamente da perdição no impessoal, regressando a si mesmo (zurückholt zu ihm selbst). Este regresso a si mesmo (Zurückholen) deve, no entanto, ter aquele modo de ser (Seinsart) cuja omissão (Versäumnis) fez com que o Dasein se perdesse no impróprio (Uneigentlichkeit). O retorno desde o impessoal (Das Sichzurückholen aus dem Man), ou seja, a modificação existenciária do impessoalmente-si-mesmo que o converte num ser-si-mesmo próprio (eigentlichen Selbstsein), deve ser efetuado como reparação da falta de escolha (Nachholen einer Wahl). Mas reparar a falta de escolha significa fazer essa escolha, decidir-se por um poder-ser a partir do seu próprio si (Nachholen der Wahl bedeutet aber Wählen dieser Wahl, Sichentscheiden für ein Seinkönnen aus dem eigenen Selbst). Ao fazer a escolha (Wählen der Wahl), o Dasein torna pela primeira vez possível o seu próprio poder-ser 2.
Mas como está perdido no impessoal, tem primeiro de se encontrar a si próprio. E para poder de alguma forma encontrar-se a si mesmo, tem de se “mostrar” a si mesmo na sua possível propriedade. O Dasein precisa do testemunho de um poder-ser-si-mesmo (Bezeugung eines Selbstseinkönnens), que ele já é sempre como possibilidade.
Na interpretação que se segue, tomaremos como testemunho que responde a estas exigências aquilo que a auto-interpretação quotidiana do Dasein conhece como a voz da consciência (Stimme des Gewissens) 3. Que o “fato” (Tatsache) da consciência seja questionado, que sua função de instância para a existência do Dasein seja apreciada de diferentes modos, e que “o que ela diz” seja interpretado de diferentes maneiras, só nos deveria levar a um abandono deste fenômeno (Phänomen), se a “dubitabilidade” (Zweifelhaftigkeit) deste factum (Faktum) ou da sua interpretação não provasse precisamente que estamos perante um fenômeno originário do Dasein. A análise que se segue coloca a consciência (Gewissen) no pano de fundo temático de uma investigação puramente existencial 4 que aponta uma ontologia fundamental.
Em primeiro lugar, a consciência deve ser reconduzida aos seus fundamentos e estruturas existenciais, e clarificada como fenômeno do Dasein, tendo em conta a constituição do ser deste ente a que se chegou até agora. A análise ontológica da consciência assim entendida é anterior a uma descrição psicológica das vivências da consciência moral e a uma classificação das mesmas; e é alheia a uma “explicação” biológica ou, por outras palavras, a uma dissolução do fenômeno. Mas não está menos distante de uma interpretação teológica da consciência ou, mais ainda, da utilização deste fenômeno para demonstrar a existência de Deus ou como uma consciência “imediata” de Deus.
No entanto, mesmo dentro destes limites da investigação da consciência, os seus resultados não devem ser sobrevalorizados, nem minimizados com base em falsas expectativas. A consciência, como fenômeno do Dasein, não é um fato que ocasionalmente ocorre e de vez em quando se torna presente, mas apenas “é” no modo de ser do Dasein, e sempre se acusa como factum (Faktum) apenas na e com a existência factual (faktischen Existenz). A exigência (Forderung) de uma “prova empírica indutiva” da “eficácia” do fato (Tatsächlichkeit) da consciência e da autoridade (Rechtmäßigkeit) da sua “voz” (Stimme) assenta numa deturpação ontológica do fenômeno. Mas esta deturpação é também partilhada por qualquer crítica pretensamente superior que considere a consciência como um “fato” que ocorreria apenas por vezes, e que não seria “universalmente constatado e verificável”. O factum da consciência não se deixa, de todo, submeter a tais testes e contra-testes. Não se trata de uma deficiência, mas apenas do sinal em que se acusa a sua heterogeneidade ontológica em relação a tudo o que é-aí no mundo circundante.
A consciência dá a entender “algo” (etwas), a consciência abre-se (erschließt). Desta caracterização formal surge a indicação de referir este fenômeno à abertura (Erschlossenheit) do Dasein. Esta estrutura fundamental do ente (Grundverfassung des Seienden) que somos nós próprios é constituída pela disposição afectiva, pela compreensão, pela queda e pela fala (Befindlichkeit, Verstehen, Verfallen und Rede). Uma análise mais aprofundada da consciência a revelará como um chamamento (Ruf). O chamamento é um modo de discurso. O chamamento da consciência tem o carácter de um apelo (Anruf) ao Dasein para que se encarregue do seu mais próprio poder-ser-si-mesmo, e isto no modo de uma insinuação (Aufruf) para que desperte para o seu mais próprio ser-culpável (Schuldigsein).
Esta interpretação existencial está necessariamente afastada do entendimento ôntico e quotidiano comum, ainda que revele os fundamentos ontológicos daquilo que, dentro de certos limites, sempre foi entendido pela interpretação vulgar da consciência, e que esta concebeu como uma “teoria” da consciência. Assim, a interpretação existencial precisa de ser verificada por uma crítica da interpretação vulgar da consciência. Uma vez esclarecido o fenômeno, é possível determinar em que medida ele testemunha um poder-ser próprio do Dasein. Ao apelo da consciência corresponde a possibilidade de escuta (mögliches Hören). A compreensão do apelo revela-se como um querer-ter-consciência (Gewissenhabenwollen). Mas neste fenômeno temos algo que antes procurávamos: o ato existenciário de fazer a escolha de um ser-si-mesmo (existenzielle Wählen der Wahl eines Selbstseins), ato a que chamaremos, de acordo com a sua estrutura existencial, a resolução (Entschlossenheit). Com isto, traça-se a articulação das análises do presente capítulo: os fundamentos ontológico-existenciais da consciência (§ 55); o carácter vocativo da consciência (§ 56); a consciência como apelo do cuidado (§ 57); a compreensão do apelo e da culpa (§ 58); a interpretação existencial da consciência e a interpretação vulgar da consciência (§ 59); a estrutura existencial do poder-ser próprio atestado na consciência (§ 60).
- 1) o testemunho como tal, 2) o testemunhado nele[
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- Acontecimento do ser – filosofia, liberdade[
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- As considerações acima e as seguintes foram dadas a conhecer sob a forma de uma tese por ocasião de uma conferência pública sobre o conceito de tempo lida em Marburgo (julho de 1924)[
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- Isto agora mais radicalmente da essência do filosofar[
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