Intimidade — é com esta maltratada palavra que iremos abordar, nas investigações que se seguem, os mistérios da loucura topográfica humana, que sempre principia como loucura interior (para se tornar manifesta, posteriormente, como loucura exterior), pois não dispomos de uma palavra melhor e menos prostituída. Mas talvez seja útil, para atiçar o pensamento, abordar a situação mais incomum com a expressão mais desbotada. Seria prematuro adentrarmos já aqui na expressão de Heidegger, para quem “ser-aí” (Dasein) significa “imersão para dentro do nada” (Hineingehaltenheit in das Nichts) — pois não estamos em condições de dizer, em termos explícitos e renovados, o que significam “ser-aí”, “imersão”, “nada” e, sobretudo, “para dentro” (hinein).1 Igualmente inoportuno seria entrar já agora no teorema proposto por Deleuze e Foucault de que o sujeito seria uma dobra do exterior, pois não sabemos ainda absolutamente nada de uma superfície ou de uma exterioridade cuja dobradura pudesse produzir algo como uma interioridade ou um self. Só se pode destacar, antecipadamente, que a intimidade, para além de sua doce fachada, só pode ser compreendida como uma abissalidade naquilo que está mais próximo a nós. A teoria do íntimo, a ser desenvolvida na análise das microesferas que se segue, está dedicada à tentativa de mostrar que todas as ciências do homem aportaram desde sempre contribuições para um surrealismo topológico, porque em nenhuma época foi possível falar de homens sem lidar com as bruxuleantes poéticas do espaço interior habitado. Os espaços pelos quais os homens se deixam conter têm sua própria história — uma história, é claro, que jamais foi contada e cujos heróis, por isso mesmo, não são os homens eles próprios, mas os topoi e as esferas, em função dos quais os homens desabrocham e das quais tombam, quando seu desenvolvimento malogra.
[SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. Bolhas. Tr. José Oscar de Almeida Marques (modificada). Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2016]- O teorema de Heidegger do lugar essencial será mais bem examinado à frente, na Digressão 4: “No Dasein há uma tendência essencial à proximidade”.[
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