Com a expressão que se acabou de empregar — complementação original —, enunciamos uma figura fundamental das reflexões que vão se seguir no campo esferomorfológico. Ela exprime que, no espaço espiritual (sob a suposição, ainda a confirmar, que “espírito” indica um tipo próprio de espacialidade), o dado mais simples já é uma grandeza de no mínimo dois lugares, ou bipolar. Pontos isolados são apenas possíveis no espaço homogeneizador da geometria e do movimento, ao passo que o verdadeiro espírito é desde sempre espírito no e diante do espírito; a verdadeira alma, desde sempre na e diante da alma. O nível elementar, primário, simples, surge em nosso caso já como ressonância entre instâncias polares: o originário manifesta-se desde o início como dualidade correlativa. O acréscimo do segundo ao primeiro não ocorre (40) como ajuntamento exterior e subsequente, do modo como, na lógica tradicional, os atributos são introduzidos, por assim dizer, como retardatários e fornecedores de propriedades à substância. E verdade que, quando se pensa a substância, os atributos ocorrem mais tarde, como o negro vem ao cavalo e o vermelho, à rosa. Na íntima partilha da subjetividade por um par que habita um espaço espiritual aberto a ambos, segundo e primeiro sempre ingressam apenas em conjunto. Onde não ocorre o segundo, tampouco o primeiro está dado. Disso se segue que mencionar o criador sem enfatizar a antecedente coexistência de Adão já é incorrer em um erro de monarquismo originário, assim como os que pretendem falar de seres humanos sem falar de seus inspiradores e intensificadores — ou, o que dá no mesmo, dos meios de comunicação que o envolvem — já falsearam o tema pelo próprio modo de tratá-lo. Um cavalo platônico, uma rosa celestial — tais coisas, se for preciso, podem continuar a ser o que são mesmo sem o negro e o vermelho. Mas, quanto a Deus e Adão — se sua ligação de insuflação for tal como devemos supor com base na letra e no espírito do relato do Gênesis —, eles formam desde o início uma união diádica que só subsiste por sua bipolaridade desdobrada. O par primordial paira em uma dupla unidade atmosférica, em uma correlação mútua e uma dissolução de um em outro da qual nenhum dos parceiros pode separar-se sem anular a relação em seu todo.
(SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. Bolhas. Tr. José Oscar de Almeida Marques. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2016)