Filosofar, fazer reflexões filosóficas em tempos de pandemia, no Rio, no Brasil? O que isso quer dizer? O que quer dizer filosofar, fazer reflexões filosóficas em tempos de pandemia num país que conhece desde sempre epidemias bióticas, sociais, políticas; num país onde os indígenas, desde o começo da era moderna, foram e continuam a ser mortos e exterminados por epidemias, essas “armas biológicas”, tão antigas, na verdade, a serviço da virulência brutal da estratégia colonizadora? Isso quer dizer e pode dizer muitas coisas.
Isso quer e pode dizer filosofar, fazer reflexões filosóficas em tempos de uma pandemia da linguagem, onde a linguagem médica da virologia já tem, há vários decênios, contaminado a técnica cotidiana da linguagem: podemos lembrar aqui as reflexões importantes de Victor Klemperer na sua obra LTI – A Língua do Terceiro Reich e como, no dia a dia, as tecnologias de informação, falam tanto de vírus. Mais do que uma metáfora absorvida historicamente pelas culturas e seus sofrimentos, a linguagem tem se mostrado não apenas um grande meio transmissor de vírus sociais e políticos, sem o que não teria sido possível termos hoje um governo fascista como o que enfrentamos, como também parece estar cada vez mais se tornando ela mesma um vírus. Nossos computadores têm vírus, e os vírus midiáticos são descritos em termos de catástrofes de fim de mundo. Ou seja, a “coronação”, como disse de maneira poético-politica o poeta francês Michel Deguy, dá indicações de como a pandemia biótica está contaminada pela pandemia tecno-midiática da globalização. A pandemia e a globalização são indissociáveis, e é a globalização que torna uma epidemia, assim como a do corona, pandêmica. Já faz anos que vírus virou verbo: usamos o verbo “viralizar” para dizer propagar, disseminar, veicular uma notícia, uma propaganda, um vídeo, um meme, e, sobretudo, os produtos do narcisismo de cada um. A pandemia se auto-viralizou, se contaminou a si mesma. Tanto a pandemia como as medidas anti-pandêmicas se viralizaram imediatamente, com a rapidez elétrica à qual já estamos tão habituados.
Excerto de [O Isolamento do Mundo->https://bazardotempo.com.br/o-isolamento-do-mundo-por-marcia-sa-cavalcante-schuback/], tradução da autora de seu texto em [Philosopher en temps de pandémie – qu’est-ce que ça veut dire ?->https://www.academia.edu/42969410/Philosopher_en_temps_de_pande_mie]