Entendido como um “fora de si”, o “eu” descobre em seu princípio um “passado”, um antes da analogia de ser-como-alguma-coisa e, portanto, um antes de si mesmo. A suposição de um passado do eu exprime, desta maneira, a suposição de uma história do eu, de uma história da consciência. Esta suposição que identifica o pensamento de Schelling e Hegel como Sistema do Idealismo é, também, o que os distingue. Para Schelling, o passado do eu e da consciência é um passado transcendental, um passado que não se determina como um ainda-não eu mas como um não-eu. Ou, em outros termos, o passado do eu é transcendental porque é, em si mesmo, gênese de natureza e matéria. Assim pré-apreendida, a natureza não apenas é, fundamentalmente, história como, em sendo história, é idêntica à história da consciência. A sua identidade é uma identidade dinâmica onde o ser de uma “é” o não-ser da outra. E o que diz Schelling nas Ideen zu einer Philosophie der Natur: “A natureza deve ser o espírito visível e o espírito a natureza invisível” 1.
A base de uma filosofia da natureza consiste na intuição intelectual do passado transcendental do eu que é, em última instância, intuição da essência do eu como um “fora de si”. Somente na comprovação desta estrutura de exteriorização como fundadora da inferioridade do eu é que a natureza pode, pela primeira vez, deixar de ser tomada como objeto da filosofia para erguer-se como base ontológica. Isso acontece quando, na admissão do “fora de si” como fundamento do eu, a natureza se pronuncia como produto de uma atividade que ultrapassa o eu e, portanto, como genealogia e história. O ato processual do eu, determinado por Fichte como “natureza” do eu, nada mais faz do que aniquilar a natureza, reduzindo-a a simples produto de um ato da consciência. Schelling exprime da seguinte maneira este aniquilamento da natureza consequente ao idealismo fichteano:
“Para um autêntico investigador da natureza, o que pode ser mais contrário e irritante para a intimidade de sua alma do que a concepção e consideração teleológica das coisas? Nos sistemas mais antigos, ao menos colocava-se como finalidade arcaica e originária da natureza a revelação dos dons, a sabedoria e a força da essência eterna: no sistema de Fichte, ela perdeu o seu último resto de um caráter sublime e toda a sua existência se encaminha para a finalidade de sua produtividade e elaboração pelo homem… As forças da natureza só existem (segundo a dedução da física de Fichte) para se submeterem aos fins humanos. Esta submissão foi, certa vez, pronunciada como uma superação e aniquilamento gradual da natureza (portanto real?) pelo homem e, numa outra, como a vivificação da natureza pela razão humana; como se tal submissão aos fins humanos não constituísse uma morte do vivo já que não seria possível vivificar o que só pode ser limite”2.
A intuição intelectual do “fora de si” do eu é visão e “previsão” da negação da natureza em toda filosofia que se baseia no princípio absoluto do eu. A filosofia só pode elevar-se a uma filosofia da natureza à medida que apreende o fora de si como o outro dentro de si, ou seja, a natureza como história e devir, na identidade de ser e não-ser. O espírito só pode ser a matéria invisível e a matéria o espírito visível (a história da consciência só pode ser história da natureza) ao se admitir no ser um não-ser. Ao avaliar a sua primeira filosofia, Schelling observa na obra tardia Filosofia da revelação que:
“O não-ser, aquilo que o ser verdadeiro não é, deve, de certo modo, ser reconhecido como sendo. Isso é o tema do Sofista de Platão que constitui um canto de celebração da ciência mais elevada. O conceito do não-ser é altamente importante” 3.
- Schelling, Ideen zu einer Philosophie der Natur, em Ausgewählte Schriften, em 6 volumes, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1985, p. 186.[↩]
- Schelling, SW, ed. de 1856-61, parte 1-7, p. 110, in Darstellungen des wahren Verhältnisses der Naturphilosophie zu der verbesserten Fichteschen Lehre (1806).[↩]
- Schelling, BO., p. 113[↩]