Sallis (1990:18-19) – pré-filosofia em Ser e Tempo

Em Ser e Tempo, a não-filosofia é a pré-filosofia, o pré-ontológico, que permanece contínuo com a filosofia, essencialmente, estruturalmente contínuo. De fato, o que estrutura e garante a continuidade é nada menos que a própria determinação do Dasein, sua essência (ou sua “essência”, para marcar assim a própria transformação da essência na qual Ser e Tempo está engajado): naquele próprio comportamento ao Ser pelo qual o Dasein é, antes de tudo, determinado como tal, o Dasein é, preontologicamente, a questão do Ser, a questão definitiva da ontologia, da filosofia como tal: “Mas a questão do Ser nada mais é do que a radicalização de uma tendência essencial do Ser (Seinstendenz) que pertence ao próprio Dasein, a compreensão pré-ontológica do Ser” (SZ 15). Retomar, filosoficamente, a questão do Ser é tornar explícita a compreensão do Ser que o Dasein sempre já operou. Ou, mais precisamente, é ouvir (abzuhören) a própria recuperação do Dasein de sua compreensão do Ser; é interpretar a própria auto-revelação do Dasein: “Tal interpretação toma parte nessa revelação apenas para existencialmente elevar a um nível conceitual (in den Begriff) o conteúdo fenomenal do que foi revelado” (SZ 140). A continuidade, portanto, prescreve o caráter metodológico da análise do Dasein, embora muito do que emerge da análise — principalmente o emaranhamento do Dasein na autoculpabilização e, no nível da tradição, a submissão a uma Vergessenheit que agora deve ser combatida pela Destruktion — serve para mostrar o quão complexa e exigente é a transição da pré-filosofia para a filosofia.

Derrida chamou atenção especial para essa continuidade, especialmente para a forma que ela assume quando, no início de Ser e Tempo, Heidegger examina a estrutura formal da questão do Ser. (19) Aqui ela aparece como a coincidência do questionador com o questionado: a estrutura é tal que o questionador deve assumir a questão ao interrogar um ser (Dasein) com o qual ele coincide. Essa coincidência, expressa no discurso heideggeriano pelo “nós” — Derrida, é claro, faz a comparação com Hegel — é o que garante a possibilidade da análise do Dasein que se abre para a questão do Ser, a possibilidade de realizar essa análise de maneira rigorosa, fenomenologicamente.

Tudo depende do que estou chamando — para marcar a cautela necessária — de coincidência do questionador com o questionado; ela determina não apenas a possibilidade e a estrutura da análise, mas também o alcance do horizonte dentro do qual essa análise pode ser inscrita. A coincidência não é, obviamente, mera identidade, pois sempre deve ter sido aberto um campo no qual a interpretação pode ocorrer, um espaço no qual um conteúdo fenomenal pode ser elevado a um nível conceitual. Tal abertura não deslocaria a análise de Heidegger da esfera da filosofia, não mais do que no caso da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Até esse ponto, alguém seria tentado a repetir o que Derrida diz em um momento de sua leitura de Heidegger: “Esse nós — por mais simples, discreto e apagado que possa ser — inscreve a chamada estrutura formal da questão do Ser no horizonte da metafísica.”1

  1. Jacques Derrida, Marges de la philosophie (Paris: Les Editions de Minuit, 1972), 149.[]