Safranski (Heidegger) – Husserl e Heidegger

Lia Luft

Quando Edmund Husserl foi a Freiburg em 1916, a fama da fenomenologia ainda não saíra do campo da filosofia especializada. Mas poucos anos depois, nos primeiros anos do pós-guerra, uma especialidade filosófica didática já é quase um portador de esperanças em nível de concepção de mundo. Hans-Georg Gadamer relata como no começo dos anos vinte, quando os “lemas de derrocada do Ocidente eram onipresentes”, em uma “discussão entre pessoas que pretendiam consertar o mundo” se mencionou fenomenologia além de Max Weber, Karl Marx e Kierkegaard, entre as inúmeras sugestões de como salvar a Europa. Portanto em poucos anos a fenomenologia se transformara em um comentário muito promissor, que levou Gadamer como tantos outros a ir a Freiburg para lá escutar o mestre da fenomenologia e seu aprendiz de feiticeiro. A fenomenologia tinha a aura de um novo começo, o que a tornava popular em um tempo em que a consciência oscilava entre os extremos do espírito de derrocada e a euforia de um novo começo. Antes de 1916 os bastiões da fenomenologia eram Göttingen, onde Husserl ensinara entre 1901 e 1915, e Munique onde existia um segundo centro em torno de Max Scheler e Alexander Pfänder, independente “dos de Göttingen”. Queriam ser mais que uma escola, por isso designavam-se “movimento” (Bewegung). Não se tratava apenas de recuperar a cientificidade rigorosa na filosofia — era assim que os fenomenólogos se autodescreviam oficiosamente, mas também de reforma de vida sob o signo da honestidade intelectual: queriam superar o falso patos, o autoengano ideológico, a falta de disciplina em pensar e sentir. O espírito do círculo de fenomenólogos de Göttingen foi assim formulado por Hedwig Conrad-Martius, que pertencia a ele “era o etos da pureza e da honestidade objetivas… Naturalmente isso se refletia em disposição, caráter e modo de vida”.

O que o grupo de Stefan George Kreis fora na arte, era, quanto ao estilo de grupo, o movimento fenomenológico na filosofia. Os dois círculos queriam rigor, disciplina e pureza (Strenge, Zucht und Reinheit).

“Vamos à questão!” [Zu den Sachen! – Ir às coisas] — era a divisa dos fenomenólogos. Mas o que era a questão (die Sache – a coisa)?

Era considerada oculta e perdida na floresta dos preconceitos, das grandes palavras e das elaborações da concepção de mundo. Era um impulso parecido com aquele que Hugo von Hofmannsthal expressara no começo do século na famosa carta:

“Perdi inteiramente”, escreve o lord Chandos de Hofmannsthal, “a capacidade de pensar e falar coerentemente sobre qualquer coisa… as palavras abstratas das quais a língua naturalmente ainda tem de se servir para fazer qualquer juízo, desfaziam-se na minha boca como cogumelos embolorados”.

O que lhe rouba a fala é a evidência muda, inesgotável, opressiva mas também fascinante das coisas que se oferecem como se fosse uma primeira vez. Elas abrem-se para a evidência — também os fenomenólogos queriam isso, ignorar tudo o que até ali fora pensado e dito sobre consciência e mundo, essa era a sua ambição. Procuravam uma nova maneira de deixar as coisas se aproximarem deles sem as recobrirem com o já sabido. E preciso dar ao real uma chance de poder se mostrar. O que aí se mostra e como se mostra a partir de si, era que os fenomenólogos chamavam: o fenômeno.

Os fenomenólogos partilhavam com Hofmannsthal a certeza de que antes de tudo era preciso reaprender o verdadeiro alfabeto da percepção (Wahrnehmung). Era preciso antes de mais nada esquecer tudo o que até ali fora dito e reencontrar a linguagem da realidade (Wirklichkeit). Para os primeiros fenomenólogos porém devia ser reconquistada antes de tudo a realidade da consciência [Bewußtseinswirklichkeit] e, só através dela, também a realidade externa [äußere Wirklichkeit].

Os fenomenólogos eram modestos de maneira imodesta, pois acusavam os filósofos em torno de construírem seus sistemas sem fundamento. A consciência [Bewußtsein] não estava suficientemente reconhecida, era um continente não pesquisado. Começavam pesquisando o inconsciente [Unbewußten], quando ainda nem estavam familiarizados com o consciente [Bewußtsein].

Husserl foi o iniciador do movimento. Exortava seus alunos a serem rigorosos: “Não devemos nos considerar bons demais para trabalhar nos fundamentos” costumava dizer. Os alunos deviam considerar uma honra serem operários “nas vinhas do Senhor” (Weinberg des Herrn), e não se definia que “Senhor” era aquele. Pensemos no espírito da humildade e da ascese, da honestidade e da pureza — que nos fenomenólogos por vezes também era chamada “castidade” (Keuschheit) e não pode mais ser considerado acaso que alguns dos fenomenólogos mais tarde se tornassem muito devotos. O mais destacado exemplo é Edith Stein, agora canonizada. Ela “serviu” (diente), era a expressão que usava — à fenomenologia nos primeiros anos de Göttingen, antes de 1914; entre 1916 e 1918 foi assistente de Husserl em Freiburg, nos anos vinte converteu-se à fé católica, por fim entrou no convento, de onde os nazistas a tiraram, matando-a em Auschwitz por ser judia.

A fenomenologia era um projeto, disse o discípulo de Husserl, Adolf Reinach, “que precisava do trabalho de séculos para ser executado”. Quando Husserl morre em 1938, deixa um maço de quarenta mil páginas manuscritas inéditas. E comparação com isso sua obra publicada em vida parece modesta. Depois das Investigações lógicas, de 1901, dois livros fundamentaram sua fama e ajudaram sua filosofia a se impor: Filosofia como ciência rigorosa, de 1910, e o primeiro volume (único publicado em sua vida) das Ideias sobre uma fenomenologia pura e filosofia fenomenológica, de 1913.

Em seus audaciosos sonhos, confiados ao diário, Husserl imaginara que o futuro da filosofia pudesse continuar tecendo o que ele iniciara. Repetia sempre que era um “iniciador” (Anfänger). E foi isso, também na lida com sua própria obra. Quando queria aprontar para publicação um manuscrito realizado há algum tempo, começava a reescrever todo o texto, para desespero de seus assistentes que tinham de ajudar nisso. E também sempre recomeçava com seu próprio pensar, portanto era-lhe difícil fazer valer o que escrevera. A consciência, especialmente a sua própria, era para ele um rio do qual sabidamente não se pode mergulhar duas vezes nas mesmas águas. Dessa postura desenvolveu-se nele uma verdadeira fobia de publicar. Outros filósofos, que não tinham esse problema, como por exemplo Max Scheler, para quem obviamente era uma ninharia preparar para publicação três livros ao mesmo tempo, pareciam-lhe suspeitos. As vezes falava de modo desrespeitoso de Max Scheler, apesar de reconhecer sua genialidade: “E preciso ter boas ideias; mas não as devemos tornar públicas”, costumava dizer Husserl. Max Scheler, que tinha suas melhores ideias enquanto conversava e, se não tinha papel disponível, as anotava até nos punhos engomados, realmente não queria nem podia guardar nada para si. Diferente de Husserl, que meditava tanto em sua obra que ela cresceu naquele gigantesco maço de manuscritos que um padre franciscano salvará dos nazistas em uma ação aventuresca em 1938 contrabandeando-a para Louvain na Bélgica — onde ainda hoje estão preservados em um local de pesquisa especialmente instalado.

Husserl, nascido na Morávia em 1859, crescendo em condições judaico-burguesas sólidas na monarquia do Danúbio, marcado por um tempo em que a “sensação de segurança… era o bem mais desejável, o ideal de vida comum” (Stefan Zweig), estudara matemática porque essa ciência lhe parecia confiável e exata. Depois percebera que também a matemática precisava de ser fundamentada. O fundamental, o certo, o alicerce — essa era a sua paixão. E assim ele chegou à filosofia, mas não, como escreve em seu retrospecto de vida, para uma “filosofia tradicional” na qual ele descobre “por toda parte falta de clareza, audácia imatura, vaguidão, quando não até desonestidade intelectual, nada que se pudesse aceitar, deixar valer como peça, como começo de uma ciência séria”.

Raúl Gabás

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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