Safranski: Heidegger e Bultmann

Logo depois da sua chegada em Marburg, Heidegger assistiu a uma conferência de Eduard Thurneysen, que era um dos teólogos dialéticos reunidos em torno de Karl Barth. Para Gadamer a intervenção de Heidegger ficou inesquecível, pois o que ele dizia não contrariava o espírito do lugar mas aquilo que os boatos diziam sobre Heidegger em Marburg: que ele se afastara da fé e da igreja. Heidegger disse: “é a verdadeira tarefa da teologia, para a qual esta deveria voltar, procurar a palavra capaz de convocar para a fé e preservar na fé”.

Essa formulação descreve bastante precisamente a intenção do grande teólogo presente, Rudolf Bultmann. Este viera a Marburg dois anos antes de Heidegger. Ali renovaria a teologia protestante pela segunda vez depois de Karl Barth. Essa teologia só viverá seu grande momento depois de 1945, com o nome de desmitologização, mas é nos anos de Heidegger em Marburg que Bultmann a desenvolverá. E é uma teologia no espírito da filosofia heideggeriana. O próprio Bultmann não deixa dúvidas quanto a isso. Da análise do Dasein de Heidegger, Bultmann extrai a descrição da condição humana, da “existência”: ser-lançado, preocupação, temporalidade, morte e fuga na impropriedade (Uneigentlichkeit). É importante para ele a crítica de Heidegger a uma metafísica em que o pensar imagina uma dispensa irreal do tempo e uma disponibilidade da vida. O que em Heidegger é crítica à metafísica, em Bultmann será a desmitologização. O filósofo Bultmann quer, como Heidegger, expor o “dispositivo existencial” do Dasein humano; o teólogo Bultmann quer então confrontar essa existência “nua” com a mensagem cristã, que é igualmente libertada de dogmas históricos e reduzida à sua significação existencial fundamental. O fato de que Heidegger, assim como o compreende Bultmann, não descreve um ideal de existência mas apenas os dispositivos existenciais, é que o torna tão possível de ser ligado à teologia de Bultmann. Diz Bultmann: “Na medida em que a filosofia da existência não responde à indagação pela minha própria existência, coloca a minha própria existência sob minha responsabilidade pessoal, e fazendo isso ela me abre para a palavra da Bíblia”.

Heidegger e Bultmann logo travam amizade, ambos ficarão fiéis a ela a vida inteira. Mas a relação intelectual entre os dois permanece assimétrica. Heidegger não é influenciado por Bultmann da mesma maneira como Bultmann por ele. Ele aceita a teologia de Bultmann sob o pressuposto da fé, que porém não pode ser tema da filosofia. Mas Bultmann segue o caminho da filosofia heideggeriana mais um pouco, para encontrar aquele lugar onde a mensagem cristã pode funcionar.

A convite de Bultmann, no verão de 1924, Heidegger pronuncia diante dos teólogos de Marburg a conferência O Conceito de Tempo, modelo da arte de Heidegger do eloquente silêncio filosófico nos assuntos de teologia.

No começo protesta não querer dizer nada sobre coisas teológicas e divinas, limitando-se ao humano, mas depois passará a falar a respeito de tal maneira que no final uma teologia do tipo da de Bultmann haverá de servir como a chave na fechadura.

Na época dessa conferência Heidegger já está elaborando as ideias de Ser e Tempo. Em forma condensada ele apresenta um resumo dos mais importantes dispositivos fundamentais do Dasein, todos determinados pelo caráter do tempo. Pela primeira vez aqui ele explica – com essa ênfase a temporalidade como mortalidade: O Dasein sabe da sua morte… O Dasein sente que vai passar (GA64, 12). Em cada ação e vivência aqui e agora já percebemos esse passar. O curso da vida é sempre um passar da vida. Vivenciamos o tempo em nós mesmos como esse passar. Por isso esse passar não é o fato da morte no final de nossa vida, mas a maneira como a vida se cumpre, pura e simplesmente o como de meu Dasein (GA64, 18).

Em que essas reflexões se distinguem da grande tradição do refletir sobre a morte, dos pensamentos de morte de Sócrates, da exortação cristã memento mori, da frase de Montaigne: filosofar é aprender a morrer?

Distinguem-se porque Heidegger não pensa na morte para depois triunfar sobre ela com o pensamento, mas para tornar claro que só o pensar na morte, nesse passar sempre presente, é que abrirá o acesso para a temporalidade, e com isso para a indisponibilidade do Dasein.

Essa conferência contenta-se com alusões que mais tarde serão desenvolvidas no famoso capítulo sobre a morte em Ser e Tempo. Mas as alusões bastam para rejeitar claramente uma poderosa tradição da teologia e da metafísica. É uma tradição que institui Deus ou o Ser Supremo como uma esfera removida do tempo, da qual podemos participar pela fé ou pelo pensar. Heidegger interpreta isso como fugir da própria temporalidade. A suposta ligação com o eterno não supera o tempo mas apenas recua diante dele, não amplia nossas possibilidades mas permanece aquém delas.

Essa tradição da qual Heidegger se aparta é a mesma contra a qual também Bultmann desenvolve a sua teologia da desmitologização; uma teologia que coloca no centro a mensagem cristã da cruz, portanto a morte de um Deus. Na teologia de Bultmann pressupõe-se a experiência de temporalidade assim como a elabora Heidegger. Em Bultmann é preciso ter vivenciado o ser para a morte, com todos os terrores e angústias, antes de sequer poder ser receptível à mensagem cristã. Cruz e ressurreição designam a transformação que se realiza na vida de um crente: renascimento do ser humano não é o fato fantasiado de uma eternidade futura, mas realiza-se aqui e agora como transformação do homem interior – um renascer da temporalidade radicalmente vivenciada, e isto quer dizer mortalidade da vida. Na vida rodeado pela morte, e na morte rodeado pela vida. Essa é a mensagem paradoxal e lacônica do Novo Testamento – na interpretação de Bultmann.