A problemática da ipseidade manifesta esse jogo entre o próprio e o impróprio, ao qual Heidegger mais tarde se referiria como o pertencimento de Ereignis e Enteignis. A ipseidade que está na base de cada Eu e Tu não será mais concebida como um traço do Ser que o Dasein tem de ser compreensivamente, mas com base na apropriação ou, para usar a terminologia da Beitrage (GA65), o “reino do próprio” (Eigentum): “A ipseidade surge como a essência do Da-sein e a partir da origem do Da-sein. E a origem do eu é o reino do próprio” (Selbstheit entspringt als Wesung des Da-seins aus dem Ursprung des Da-seins. Und der Ursprung des Selbst ist das Eigentum” (GA65, 319f). O ser-si-próprio, o vir-a-si (das Zu-sich-kommen), são aqui abordados em sua possibilidade última, como “a assunção do pertencimento à verdade do Ser, como um salto para o Aí” (Ubernahme der Zugehorigkeit in die Wahrheit des Seins, Einsprung in das Da) (GA65, 320). O tema de uma neutralização das determinações ônticas do eu, desenvolvido no curso de verão de 1928, Metaphysical Foundations of Logic (GA26), é seguido aqui, com a mesma identificação do eu meramente dado com a “aparência” da autêntica ipseidade. É com base nesse reinado do próprio que o Ser não-subjetivo, não-antropocêntrico e não-individualista do ser-sempre-meu (Jemeinigkeit), tal como havia sido definido desde o parágrafo 9 (ET9) de Sein and Zeit, seria agora pensado.
A esse respeito, seria enganoso opor, na obra de Heidegger, um período ainda subjetivista a um período posterior “desumanizado”. Por um lado, como vimos, a partir de Sein e Zeit, o ser-sempre-meu é referido ao próprio Ser e não ao ego ou a algum homem-coisa, e, por outro lado, a meditação sobre Ereignis preserva eminentemente uma reflexão sobre o Ser autêntico ou próprio do ser humano, seu Ser-seu-próprio (basta pensar aqui, por exemplo, no tema dos “mortais”, do ser humano como uma correspondência ao Ser, da “necessidade” que o Ser tem do ser humano por sua dação, etc.). Já em 1968, Jacques Derrida afirmou isso de forma clara e correta, explicando que “a distinção entre determinados períodos do pensamento de Heidegger, entre os textos antes e depois da chamada Kehre, tem menos pertinência do que nunca. Pois, por um lado, a analítica existencial já havia transbordado o horizonte de uma antropologia filosófica. O Dasein não é simplesmente o homem da metafísica. Por outro lado, inversamente, em Carta sobre o humanismo (GA9) e além, a atração do “próprio homem” não deixará de dirigir todos os itinerários do pensamento“ (”The Ends of Man”, em Margins of Philosophy, 124).
(RAFFOUL, François. Heidegger and the subject. Atlantic Highlands, N.J: Humanities Press, 1998)