É preciso deixar aqui de lado a história pré e pós-aristotélica do problema do fundamento. [NT: O que a língua alemã exprime com o mesmo termo Grund deve ser expresso no vernáculo umas vezes por fundamento, outras por razão.]. No que se refere à projetada colocação do problema seja, contudo, lembrado o seguinte: através de Leibniz o problema do fundamento é conhecido na forma da questão do principiam rationis sufficientis. Monograficamente foi Chr. A. Crusius o primeiro que tratou do “Princípio da Razão” em sua Dissertatio philosophica de usa et limitibus principii rationis determinantes vulgo suf ficientis (1743) [NA: Vide Opuscula philosophico-theologica antes seorsum edita nunc secundes caris et copiose suas. Lipsiae. 1750, p. 152 ss.] e, por último, Schopenhauer em sua dissertação “Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio da Razão Suficiente” (1813) [NA: Segunda edição, 1847; terceira edição, dirigida por Jul, Frauenstädt, 1864.]. Se, porém, o problema do fundamento está imbricado com as questões centrais da metafísica em geral, então deve também estar vivo mesmo lá onde não é tratado expressamente na forma conhecida. Assim Kant, aparentemente, dedicou interesse mínimo ao “princípio da razão”, mesmo que o analise tanto no começo [NA: Principiorum primorum cognitionis metaphisicae nova dilucidatio, 1755.] de seu filosofar como pelo fim [NA: Sobre uma descoberta, segundo a qual toda a crítica nova da razão pura deverá se tornar dispensável através da mais antiga, 1790.] E, contudo, situa-se ele no centro da Crítica da Razão Pura [NA: Vide mais adiante a análise de Kant.]. De não menos importância, porém, são, para o problema, as Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana e os Objetos com Ela em Conexão de Schelling (1809) [NA: Vide Obras, vol. 7, p. 333-416.].
Já a referência a Kant e a Schelling torna problemático se o problema do fundamento coincide com o do “princípio da razão” ou se é com ele, quando muito, posto. Se este não é o caso, então o problema do fundamento precisa ser primeiro levantado, o que não exclui que para isto uma discussão do “princípio da razão” possa dar motivos e proporcionar uma primeira indicação. A exposição e análise do problema é de igual importância à obtenção e delimitação do âmbito, em cujo seio se tratará da essência do fundamento, sem a pretensão de pô-lo, com um só golpe, diante dos olhos. Como sendo tal âmbito será evidenciada a transcendência. Isto quer, ao mesmo tempo, dizer: ela mesma será justamente determinada de modo mais originário e amplo através do problema do fundamento. Toda a clarificação da essência deve enquanto filosofante, quer dizer, como um esforço intimamente finito, testemunhar também sempre necessariamente a desordem (Unwesen) que o conhecimento humano insinua em qualquer essência (Wesen). [MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]
A breve exposição da dedução leibniziana do princípio da razão, partindo da essência da verdade, tinha como meta elucidar a conexão do problema do fundamento com a questão da possibilidade interna da verdade ontológica, isto quer afinal dizer, com a questão ainda mais originária e, por conseguinte, ainda mais ampla da essência da transcendência. A transcendência é, assim, o âmbito em cujo seio o problema do fundamento deverá ser encontrado. Este âmbito deve agora ser exposto em suas linhas capitais. [MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]
Afastando-nos intencionalmente desta área de problemas, analisaremos agora brevemente, num retrospecto sobre o ponto de partida de nossa investigação, se alguma coisa e o que foi ganho para o problema “do princípio da razão” através da tentada clarificação da “essência” do fundamento. O princípio diz: todo ente tem sua razão (fundamento). Pelo que precedeu, é primeiro esclarecido por que isto é assim. Pelo fato de ser, originariamente, enquanto previamente compreendido, primordialmente fundar, anuncia cada ente enquanto ente, à sua maneira, “razões”, quer sejam elas propriamente captadas e adequadamente determinadas, quer não. Pelo fato de “fundamento” ser um essencial caráter transcendental do ser em geral, por isso vale o princípio da razão do ente. À essência do ser, porém, pertence fundamento, porque ser (não ente) somente se dá na transcendência como o fundar situado que projeta mundo.
Em seguida, tornou-se claro, no que se refere ao princípio da razão, que o “lugar de origem” deste princípio não está, nem na essência da enunciação nem na verdade da proposição, mas na verdade ontológica, isto, porém, quer dizer, na própria transcendência. A liberdade é a fonte do princípio do fundamento; pois nela, na unidade de excesso e privação, se funda o fundamentar que se configura como verdade ontológica.
Se partirmos desta fonte, não compreenderemos o princípio apenas em sua possibilidade interna, mas nossos olhos se abrirão para o digno de nota que até agora não chamou a atenção, de suas formulações, que nas fórmulas vulgares é certamente reprimido. Justamente em Leibniz se encontram formulações do princípio que expressam um momento aparentemente irrelevante de seu conteúdo. Numa justaposição esquemática são os seguintes: ratio est cur hoc potius existit quam aliud; ratio est cur sic potius existit quam aliter; ratio est cur aliquid potius existit quam nihil. O cur se exterioriza como cur potius quam. Também aqui o primeiro problema não é por que via e com que meios se decidirão estas questões, cada vez faticamente postas em comportamentos ônticos. Precisa de explicitação, primeiro, qual a razão de se ter podido juntar ao cur o potius quam.
Toda legitimação deve se mover na esfera do possível, porque ela já, como comportamento intencional em face do ente, é tributária, no qual se refere à sua possibilidade, de uma fundamentação (ontológica) expressa ou tácita. Essa oferece, de acordo com sua essência, necessariamente e sempre, campos de desenvolvimento (Ausschlagbereiche) do possível – no que o caráter de possibilidade se modifica conforme a constituição ontológica do ente a ser desvelado -, porque o ser (constituição do ser), que fundamenta, como compromisso transcendental, radica, em favor do ser, em sua liberdade. O reflexo desta origem da essência do fundamento no fundar da liberdade finita mostra-se no “potius quam” da fórmula do princípio de razão. Mas novamente impele a clarificação das concretas conexões transcendentais entre “razão” e “antes que”, para a explicitação da ideia de ser em geral (que-ser, como-ser, algo, nada e nulidade). [MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]