(RMAP:203-306)
Comecemos então pelo mais simples. Não estamos sempre presentes a nós mesmos, longe disso. Deixemo-nos viver no esquecimento de nós mesmos, como costuma acontecer, e atentemos para o dado da presença do outro.
O que se segue é uma descrição desse dado, ou seja, da empatia a parte objecti, ou do lado “noemático” de seu objeto. Posteriormente, passaremos ao aspecto “noético”, à descrição da empatia a parte subjecti, ou da classe correspondente de atos. Doravante, nos esforçaremos para associar um significado fenomenológico preciso ao termo “empatia” (Einfühlung), que possa subtraí-lo à vagueza com que é empregado em diversos contextos como sinônimo de “identificação”, “colocar-se no lugar do outro”, “transpor distâncias” e assim por diante.
O aspecto negativo desta fenomenologia do evidente – o fato de as pessoas normalmente não parecerem diferentes do que são especificamente – já deveria nos ser conhecido há muito tempo: trata-se apenas de um caso particular do princípio de fidelidade. A maneira como esses seres que aprendemos rapidamente a chamar de “pessoas” se dão a conhecer, as formas como nos interessam, nos deixam indiferentes ou suscitam emoções e ações diferem totalmente das maneiras como outros tipos de entidades se oferecem à experiência. E sejam cadeiras, quadros, livros, montanhas ou [204] teoremas, cada um desses tipos tem seus próprios modos de presença.
Devemos agora aprofundar o aspecto positivo desta fenomenologia do evidente. Ou seja, o fenômeno da subjetividade – daquilo que é dado à percepção psicológica.
Vemos certamente a vida de uma planta, mas não vemos sua subjetividade. Dentro de certos limites, percebemos a subjetividade de um animal. Por exemplo, a de um cão. Mas apenas dentro de certos limites. Em situações determinadas, a presença de um cão já não é a de um sujeito. Por exemplo, se estamos nus, não sentimos vergonha diante de nosso cão.
“Nós percebemos” as pessoas como tais. O que significa esse “como tais”, que é a indicação do tipo? Significa enquanto sujeitos. E o que significa “enquanto sujeitos”? Enquanto outros eus.
Poder-se-ia dizer que o aspecto principal do fenômeno pessoa é a identidade de natureza (connaturalitas), ou seja, o aspecto que nos mostra as pessoas como outros eus. Outro eu não é apenas alguém que vive como eu vivo, mas alguém que se vive como eu me vivo: e é como tal que o percebo. Alguém que está presente a si mesmo, implícita ou explicitamente, de todas as formas como eu também posso estar. Quando respira e não pensa em nada, mas se sente bem, isso se lê em seu rosto. Quando caminha e não apenas o faz, mas se vive caminhando (cinestesia), percebemos o movimento vivido e sua diferença com o movimento que não o é. O pobre escultor do Soldado Desconhecido tentou restituí-lo: por mais convencional que seja, seu soldado não se parece com um paralítico que aciona suas próteses. Mas quantas outras coisas vemos da vida interior de outro! Vemo-lo tomar decisões, sentir prazer, sofrer. Vemo-lo quando nos olha e ele nos vê assim como nós o vemos.
[205] Pensando novamente nos olhos cegos da estátua, podemos observar que a criança filósofa expressou uma intuição à qual Jean-Paul Sartre dedicou algumas de suas mais belas e famosas páginas de O Ser e o Nada 1, aquelas dedicadas ao olhar. O olhar do outro que me surpreende no ato repreensível de espiar pelo buraco da fechadura, que me prende à minha responsabilidade e à impossibilidade de modificar esse ato, que me faz “existir” exatamente onde gostaria de me perder, engolido pela vergonha. Tal experiência não seria possível se a percepção de outra pessoa não fosse já de certa forma percepção de sua interioridade. De modo que, por uma vez, não é desagradável reencontrar, nessa página de Sartre, a dialética hegeliana da consciência de si, a luta pelo reconhecimento e todo o resto, em suma, a aventura da subjetividade que se faz e se reconhece mediante a do outro, com todo o dispositivo do em-si e do para-si… O outro me julga. Ou então – ele me sorri, me admira, me ama. Ele me odeia. Ele nem sequer me nota. Ele está ofegante. Ele está cansado. Ele está triste. E assim por diante.Em resumo, percebemos os outros como centros de decisão e ação, e como sujeitos de experiência em todos os sentidos do termo: conhecimento, paixão, felicidade e sofrimento. Como seres que pensam e que julgam: a prova disso é a vergonha que sente, antes mesmo de ter tempo para refletir, o voyeur desmascarado. Eis o primeiro ponto, e é o que nos diz nesse caso o princípio de fidelidade.
O segundo ponto é que nem todos os aspectos da vida de outro eu se manifestam da mesma maneira (princípio de transcendência).
A diferença é evidente. Percebemos de um sujeito, propriamente falando, tudo o que é suscetível de receber uma expressão (facial, somática, dinâmica). [206] Emoções singulares: a vergonha, por exemplo, a raiva ou o medo. Disposições de caráter: assim a impetuosidade, o orgulho. Disposições e estados afetivos – a admiração, por exemplo – ou passionais (o ciúme); disposições ou estados “conativos” (o esforço, a firmeza de uma decisão).
Mas uma criança poderia observar que “o que se pensa” não se vê, se por pensar entendemos realmente um ato teórico. Como se sente, como se avalia, o que se faz: nos casos ordinários, podemos ver um pouco. Certamente, posso sempre dissimular um sentimento, mas a diferença com um aspecto da vida interior que não é suscetível de expressão involuntária é evidente. Não preciso dissimular o cálculo aritmético que executo mentalmente – e nem sequer saberia o que significaria dissimulá-lo. Assim, exceto pelos clichês convencionais sobre a aparência externa, não distinguimos à primeira vista um gênio matemático de um gênio filosófico; enquanto distinguimos à primeira vista um caráter impetuoso de um caráter fleumático.
Poderíamos dizer, tentando uma generalização, que os estados e disposições que concernem ao domínio do sentir e do querer são normalmente expressivos, enquanto os estados e disposições que concernem ao domínio cognitivo normalmente não o são. (Mesmo que, é claro, fosse preciso refinar tudo isso: pois não há um único ato de pensamento que não envolva, mesmo em mínima medida, um sentimento, uma avaliação, uma escolha; e quase não há sentimento, avaliação ou decisão dos quais não se possa explicitar o conteúdo proposicional, ou pensamento.)
Como explicar essa diferença? Haveria então algo visivelmente mais pessoal na realidade pessoal? Haveria aspectos da vida do sujeito que o manifestam como tal, e outros não?