Paul Gilbert (2005:13-15) – a diferença ontológica

A PROBLEMÁTICA DA “diferença ontológica”, ou da diferença entre o ser e o ente, sempre caracterizou o discurso filosófico1. Ela, entretanto, foi tematizada recentemente por Heidegger em suas aulas intituladas Os problemas fundamentais da fenomenologia e Conceitos fundamentais, e aprofundada nas duas conferências que ele reuniu sob o título Identidade e diferença 2.

Descrita de um modo totalmente genérico 3, essa problemática considera que os entes (tudo aquilo que se apresenta em nossa experiência, as coisas sensíveis, nossas palavras, nossos signos, nossas ideias etc.), múltiplos e portanto distintos uns dos outros (diferença ôntica), remetem espontaneamente uns aos outros e se unificam em um princípio (esta página de (14) papel remete a um livro, a um cômodo no qual eu a leio; a operação aritmética de adição se une à da subtração etc.). Ora, o princípio que unifica todos os entes (sensíveis como uma folha de papel ou inteligíveis como um número) não é nada daquilo que ele unifica. O que faz parte de uma série não pode estar no princípio dessa série. O princípio, por natureza universal (o universal, que se diz de mais de um, unifica ou sintetiza vários), deve ser diferente daquilo que ele une, superior. Essa é a significação da palavra “diferença” na expressão “diferença ontológica”. Essa expressão significa mais precisamente, mediante a palavra “ontológica”, que o princípio superior, “diferente”, o mais universal de todos, é o ser (ontos é o genitivo do participio presente do verbo grego que significa “ser”) enquanto dito (logos) e não enquanto semelhante a um ente que estaria “aqui” ao modo de uma coisa já feita. A problemática da diferença ontológica reconhece, além disso, que todo ente “é”, e que por essa razão nenhum é o “mesmo” que um “outro”, que todos os entes semelhantes enquanto entes são também radicalmente diferentes, precisamente enquanto cada um é. A palavra mais universal, “ser”, indica o que pertence em comum a todos (não podemos conceber ou experimentar o que “é” concebível ou experimentável), mas isso de tal modo que nada possa ser confundido com um outro. O universal “ser” une tudo, mas assegurando a cada ente a sua irredutibilidade a qualquer outro ente. Desse modo, o tema da diferença ontológica está no âmago da meditação metafísica mais clássica.

Na literatura atual, essa problemática, originariamente a do uno e do múltiplo, foi frequentemente retomada e ampliada, tanto na Alemanha como na França e na Itália 4, mas também nos Estados Unidos, onde os escritos de Derrida, emblemáticos desse tema, obtiveram um grande sucesso 5. Ela se tornou uma passagem obrigatória para toda reflexão metafísica que não se contente apenas com a perspectiva analítica. Sua importância provém de uma expectativa ou de uma exigência de nossa época.

(15) O homem contemporâneo, fascinado pela ciência, é esmagado por ela. A ciência, por mais eficiente que seja, uniformiza o nosso universo e produz uma cultura mundial em que muitos não se reconhecem. Os sucessos técnicos entusiasmam ao mesmo tempo em que atordoam e inquietam. Precisamos ficar livres de nossa fascinação primária pela ciência. Esta ignora o princípio ontológico, o ser que une diversificando. Ela reduz a diversidade dos entes materiais à unidade dos princípios formais. O espírito humano exige mais que a ciência para compreender-se no âmago do mundo. No início de nosso século, Bergson fez um chamado às nossas culturas empiristas para que houvesse um “suplemento de alma”; o mesmo fez Husserl em suas conferências sobre A crise do espírito europeu 6. Ao tematizar a diferença entre o ser e o ente, Heidegger também previne contra os excessos das ciências e das técnicas. Essas preocupações também foram as do existencialismo, que se irradiou por volta dos anos cinquenta e que certamente influenciou Heidegger, sem contudo constituir a espinha dorsal de seu empreendimento. Pode-se pensar que a problemática da diferença ontológica remete a uma meditação que procura libertar a existência do poder da ciência sobre os entes.

Ora, essas inquietações contemporâneas inegavelmente estimularam uma nova atenção pelos grandes textos antigos, os de Santo Tomás sobre o esse e o ens, por exemplo 7. A confrontação entre o Aquinate e Heidegger 8 certamente será rica em ensinamentos para aprofundar nossa reflexão sobre a “diferença ontológica”.

  1. “Se já a metafísica, ao longo de toda a sua história, fala do ser do ente que ela declina em seus diferentes casos em idea, energeia, actualitas, mônada, objetividade, espírito absoluto, saber absoluto, vontade de poder, de onde se determina então a essência desse ser?” (HEIDEGGER, M. De la compréhension du temps dans la phénoménologie et dans la pensée de la question de l’être, p. 193).[↩]
  2. HEIDEGGER, M. Les problèmes fondamentaux de la phénoménologie; Id., Concepts fondamentaux; Id.,Identité et différence, sobretudo a primeira parte: “Le principe d’identité”. . Ver a cronologia da meditação heideggeriana sobre a “diferença ontológica” em GREISCH, J. La parole heureuse. Martin Heidegger entre les choses et les mots (cap. 1: “Les destins de la différence”). Com efeito, a questão da “diferença” é a do “fundamento” (cf. PANIS, D. “La question de l’être comme fond abyssal d’après Heidegger”).[↩]
  3. Cf GARULLI,. E. “La ‘différence ontologica’”.[↩]
  4. BEIERWALTES, W. Identität und Differenz zum Prinzip cusanischen Denkens; DERRIDA, J. “La différance”; DELEUZE, G. Différence et répétition; LYOTARD, J. F. Le différend; VATTIMO, G. Le awenture delia differenza; MELCHIORRE, V. (ed.). La differenza e l’origine. Sobre a origem da renovação da problemática da “diferença”, cf. HAAR, M. Nietzsche et la métaphysique.[↩]
  5. Cf., por exemplo, GASCHÉ, R. The Tain of the Mirror, EVANS, J. C. Strategies of Deconstruction.[↩]
  6. HUSSERL, E. “Die Krisis”.[↩]
  7. “A diferença ontológica (…) em seu alcance sistemático não se afasta essencialmente da distinctio realis tomista” (BALTHASAR, H. U. von Les Héritages, 379).[↩]
  8. Ver uma espécie de estado da questão em DARDIGUES, A. “Saint Thomas d’Aquin et Heidegger”.[↩]
Excertos de ,

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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