Patocka (1992:14-15) – o mundo eclipsado pelas coisas

tradução

Daí resulta que o mundo não é um objeto tão “óbvio” como os seus componentes, com os quais nos deparamos assim que abrimos os olhos ou estendemos as mãos. Está inicialmente escondido e exige ser desvendado e aberto. Em que e através de quê está oculto? Muito simplesmente nas próprias coisas que nos são acessíveis. Cada uma delas, pelo fato de estar aí e de nos “falar”, de ter uma linguagem compreensível para nós, aponta para além de si própria. A cadeira e a mesa remetem à sala que ocupam, a sala à casa, a casa aos círculos de estranhezas que se sucedem até o deserto da natureza incontrolada e praticamente infinita; o repouso doméstico de que gozo à mesa remete para a minha atividade, o meu horário, a minha profissão, a sociedade com as suas inúmeras células e tecidos; a madeira da cadeira remete para a matéria, para a árvore que cresce, para o contexto da vida extra-humana. Cada uma destas relações, através dos seus contínuos lembretes e referências, dá origem a uma articulação do tempo pontuada pelas grandes luzes do céu diurno e noturno. Tudo isto e mil outras coisas já estão aí, assim que me sento para comer ou trabalhar de manhã. Mas eu não vejo essas coisas, ou melhor, não me disperso nelas. O complexo de referências significa que as coisas estão aí tal como são – presentes em pessoa, no original, e não num mero índice ou representação representativa – mas o que está em jogo para mim é a ocupação ou o ato que tenho de realizar no tempo e no lugar dados, o café da manhã ou o trabalho, o dever ou o descanso, o caminho a percorrer ou o objetivo a alcançar. O mundo (svet), a luz (svëtlo) com que vejo cada coisa e cada atividade que tenho diante de mim, cada projeto, é completamente eclipsado pela claridade (15) que esse projeto adquire. Tal como a luz pura cega, a claridade do mundo é absorvida de tal modo nas coisas vistas, que parece ser uma só coisa com elas. O mundo retira-se para dentro das coisas que ilumina, e retira-se pelo próprio fato de as iluminar, de as mostrar e de as tornar assim acessíveis, de as clarificar para nós e de nos dar acesso a elas. Não vemos, não experimentamos inicialmente o mundo como um mundo, mas apenas sob a espécie de coisas e projetos singulares no mundo.

original

[PATOCKA, Jan. Introduction à la phénoménologie de Husserl. Grenoble: Jérôme Millon, 1992, p. 14-15]

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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