Mitchell (2015:71-73) – Terra em “Origem da Obra de Arte”

Heidegger introduziu pela primeira vez uma nova concepção da terra (Erde) em seu ensaio “A origem da obra de arte” de 1936 (GA5). (A primeira elaboração é datada de 1931.) Isso não quer dizer que Geviert já esteja presente no ensaio da obra de arte — não está —, mas o papel que a terra desempenha ali a prepara para uma eventual inclusão em Geviert em 1949. (…)

Desde a primeira elaboração do ensaio até sua versão publicada, a terra é entendida em uma relação tensa com o mundo. A descoberta de Heidegger nesse ensaio — Gadamer chamou-a de “surpreendente” — é pensar a retirada como parte integrante do mundo e nomear essa retirada como “terra”. Embora um dos pilares de Ser e Tempo seja a interpretação da verdade como des-encobrimento, do grego aletheia (Unverborgenheit), pode-se dizer que a mudança no pensamento de Heidegger por volta da época do ensaio da obra de arte (meados da década de 1930) decorre da percepção de que esse “des” de des-encobrimento talvez seja demarcado de forma muito rígida. No lugar de uma simples oposição entre encobrimento e des-encobrimento, o pensamento de Heidegger agora se volta para a ideia de “retirada” (Entzug). A lógica dessa retirada é articulada nos cadernos da época, Contribuições à Filosofia (GA65), mas essa retirada também aparece no ensaio da obra de arte sob a rubrica da terra.

Aqui, a terra é o acompanhante necessário da aparência mundana. Heidegger toma como exemplo um templo grego para mostrar como a terra localiza e organiza o espaço e os seres ao seu redor. A tempestade ao seu redor, a luz do dia, a amplitude do céu, a escuridão da noite, a maré alta, as ondas violentas, as árvores e a grama, os animais e os insetos, tudo isso surge no âmbito do templo. Esse templo é uma obra e, como tal, abre um mundo. Mas essa abertura não é mais pensada em um contexto de fechamento ou encobrimento. Em vez disso, o que é des-encoberto na abertura do mundo é o próprio fechamento, um fechamento paradoxal que Heidegger chama de “terra”. Paradoxal porque essa terra se revela como o brilho sensual das coisas, um brilho que se retira de todos os esforços para contê-lo, como veremos.

A obra de arte abre um mundo, organiza um conjunto de relações significativas em torno dele, mas o faz por meio da apresentação de algo que não pode ser apreendido: a terra como aparência sensual. Essa correlação de retirada e aparência ultrapassa a simples oposição entre encobrimento e des-encobrimento para pensar na desestabilização de ambas, sua interdependência e seu antagonismo. Heidegger chama isso de sua luta (Streit): “A oposição do mundo e da terra é uma luta. . . . No entanto, na luta essencial, os competidores (Streitenden) elevam um ao outro, respectivamente, à autoproclamação de sua essência. . . . Na contenda, cada um carrega o outro (trägt jedes das andere) para além de si mesmo” (GA5: 35/26-27, tm, em). A terra representa a aparência de um tipo de retirada no coração do mundo e é exatamente isso que a obra de arte encena. Heidegger continua mostrando como a obra de arte serve para inaugurar ou instituir o destino de um povo histórico.

Embora as discussões a seguir recorram a essa concepção da terra em “A origem da obra de arte”, vale a pena mencionar desde o início algumas das principais diferenças entre esse relato e o da terra na quádrupla. A diferença mais óbvia está na relação da Terra com o mundo. No ensaio da obra de arte, a Terra está em pé de igualdade com o mundo, é sua parceira no “conflito” que abre um espaço para a habitação de um povo histórico. Na época do Geviert, a terra perdeu essa posição privilegiada. Ela não é mais a única antagonista do mundo, mas uma participante, juntamente com o céu, as divindades e os mortais, na construção do mundo. Mais precisamente, ela participa da coisificação da coisa, que por sua vez abre um mundo. Em suma, o dualismo terra/mundo do ensaio da obra de arte é abandonado em favor de uma concepção mais fragmentada ou diferenciada de mundo. Um segundo ponto a ser observado é que a relação entre terra e mundo não é mais a de um “conflito”. (…) a terra dança nas coisas e essas, por sua vez, geram o mundo. Por fim, embora essa lista pudesse continuar, o alcance da Terra é um pouco mais restrito na época de Geviert. No ensaio da obra de arte, a terra incluía praticamente toda a existência; de fato, a segunda versão do ensaio (1935), a palestra de Freiburg, identifica a terra com a physis como tal 1. Na época de Geviert, a concepção da terra é mais refinada. Mais importante ainda, ela é desambiguada do céu, que agora se apresenta como um membro separado de Geviert, (…) 2

Apesar dessas diferenças de grande escala, é no ensaio sobre a obra de arte (GA5) que Heidegger aborda pela primeira vez o papel da terra. De fato, talvez seja apenas um pequeno exagero dizer que o repensar da terra que ocorre ali exige, em última análise, um repensar da existência finita como tal. Uma nota marginal em “A Origem da Obra de Arte” aponta nessa direção. Para a afirmação “A obra permite que a terra seja uma terra”, Heidegger comenta (na primeira ocorrência da palavra “terra”): “significado? cf. ‘A Coisa’: o Geviert” (GA5: 32 n. c/24 n. c). Permanecer fiel a esta terra, portanto, exigiria um pensamento de Geviert (…).

  1. “Vom Ursprung des Kunstwerkes.” In De L’Origine de L’oevre d’Art. Première Version (1935), edited and translated by Emmanuel Martineau, 20– 54. Paris: Authentica, 1987, p. 26[↩]
  2. The sky is understood as part of the earth in all three versions of “The Origin of the Work of Art” as well as in other works leading up to the fourfold; see UK1: 11/335 (air, light, dark, day, night), UK2: 26, GA 5: 28/21.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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