Merleau-Ponty (1964:9-13) – ciência manipula as coisas

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A ciência manipula as coisas e renuncia habitá-las. 1 Estabelece modelos internos delas e, operando sobre esses índices ou variáveis as transformações permitidas por sua definição, só de longe em longe se confronta com o mundo real. Ela é, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como “objeto em geral”, isto é, ao mesmo tempo como se ele nada fosse para nós e estivesse no entanto predestinado aos nossos artifícios.

Mas a ciência clássica conservava o sentimento da opacidade do mundo, e é a este que ela entendia juntar-se por suas construções, razão pela qual se acreditava obrigada a buscar para suas operações um fundamento transcendente ou transcendental. Há hoje — não na ciência, mas numa filosofia das ciências bastante difundida — isto de inteiramente novo: que a prática construtiva se considera e se apresenta como autônoma, e o pensamento se reduz deliberadamente ao conjunto das técnicas de tomada ou de captação que ele inventa. Pensar é ensaiar, operar, transformar, sob a única reserva de um controle experimental em que intervêm apenas fenômenos altamente “trabalhados”, os quais nossos aparelhos antes produzem do que registram. Daí toda sorte de tentativas errantes. Jamais como hoje a ciência foi sensível às modas intelectuais. Quando um modelo foi bem-sucedido numa ordem de problemas, ela o aplica em toda parte. Nossa embriologia, nossa biologia estão atualmente repletas de gradientes que não percebemos com exatidão como se distinguem daquilo que os clássicos chamavam ordem ou totalidade, mas a questão não é colocada, não deve sê-lo. O gradiente é uma rede que se lança ao mar sem saber o que recolherá. Ou, ainda, é a estreita ramificação sobre a qual se farão cristalizações imprevisíveis. Essa liberdade de operação certamente tem condições de superar muitos dilemas vãos, contanto que de vez em quando se determine o ponto, se pergunte por que o instrumento funciona aqui, fracassa alhures, em suma, contanto que essa ciência fluente compreenda a si mesma, se veja como construção sobre a base de um mundo bruto ou existente, e não reivindique para operações cegas o valor constituinte que os “conceitos da natureza” podiam ter numa filosofia idealista. Dizer que o mundo é por definição nominal o objeto X de nossas operações é levar ao absoluto a situação de conhecimento do cientista, como se tudo o que existiu ou existe jamais tivesse existido senão para entrar no laboratório. O pensamento “operatório” torna-se uma espécie de artificialismo absoluto, como vemos na ideologia cibernética, na qual as criações humanas são derivadas de um processo natural de informação, mas ele próprio concebido sobre o modelo das máquinas humanas. Se esse tipo de pensamento toma a seu encargo o homem e a história, e se, fingindo ignorar o que sabemos por contato e por posição, empreende construí-los a partir de alguns indícios abstratos, como o fizeram nos Estados Unidos uma psicanálise e um culturalismo decadentes, já que o homem se torna de fato o manipulandum que julga ser, entramos num regime de cultura em que não há mais nem verdadeiro nem falso no tocante ao homem e à história, num sono ou num pesadelo dos quais nada poderia despertá-lo.

É preciso que o pensamento de ciência — pensamento de sobrevoo, pensamento do objeto em geral — torne a se colocar num “há” prévio, na paisagem, no solo do mundo sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por nosso corpo, não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos. É preciso que com meu corpo despertem os corpos associados, os “outros”, que não são meus congêneres, como diz a zoologia, mas que me frequentam, que frequento, com os quais frequento um único ser atual, presente, como animal nenhum frequentou os de sua espécie, seu território ou seu meio. Nessa historicidade primordial, o pensamento alegre e improvisador da ciência aprenderá a ponderar sobre as coisas e sobre si mesmo, voltará a ser filosofia…

original

  1. Publicado originalmente em Art de France , n. 1, 1961.[↩]

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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