ARENDT, Questões de Filosofia Moral
Ninguém deseja ser mau, e aqueles que ainda assim cometem malvadezas caem num absurdum morale – num absurdo moral. Quem assim age está realmente em contradição consigo mesmo, com a sua própria razão e, por isso, nas palavras de Kant, deve desprezar-se. Que esse medo do desprezo por si próprio não bastaria para garantir a legalidade, é óbvio; mas, desde que se transpusesse para uma sociedade de cidadãos respeitadores da lei, supunha-se de certo modo que o desprezo por si próprio funcionaria. Kant sabia, claro, que o desprezo por si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação era que o homem pode mentir para si mesmo. Por isso, ele declarou repetidamente que o “ponto” realmente “penoso ou desagradável” na natureza humana é a mendacidade, a capacidade de mentir.4 À primeira vista, essa afirmação parece surpreendente, porque nenhum de nossos códigos éticos ou religiosos (com a exceção do de Zoroastro) jamais conteve o mandamento “Não mentirás” – independentemente da consideração de que não apenas nós, mas todos os códigos das nações civilizadas colocaram o assassinato no topo da lista dos crimes humanos. Por estranho que pareça, Dostoiévski parece ter partilhado – sem o saber, claro – a opinião de Kant. Em Os irmãos Karamázov, Dmítri K. pergunta a Starov: “O que devo fazer para ganhar a salvação?”, e Starov responde: “Acima de tudo, nunca minta para si mesmo”.