McNeill (2020:C7) – clareira (Lichtung)

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(…) “onde a filosofia levou sua matéria a um saber absoluto (Hegel) e a uma evidência finalmente válida (Husserl)”, podemos ficar atentos a algo que se oculta, algo que já não pode ser matéria a pensar da filosofia (GA14, 79).

A este impensado da filosofia Heidegger dá o nome de clareira (Lichtung), como a abertura através da qual o curso tanto do pensamento especulativo como da intuição originária têm de passar para se realizarem como um trazer à presença. A abertura da clareira permite primeiro a passagem do pensamento à presença, permite primeiro o possível deixar aparecer algo. É a abertura dentro da qual o jogo de luz e escuridão pode ocorrer pela primeira vez, uma abertura “para tudo o que vem à presença ou à ausência” (GA14, 81). A clareira é aquilo a que Heidegger, recorrendo a uma palavra de Goethe, chama um Urphänomen, um fenômeno primordial, um Ur-sache, uma matéria primordial — a matéria primordial para o pensamento. Heidegger cita a diretiva de Goethe: “Não procure nada por detrás dos fenômenos: eles próprios são o que deve ser aprendido”, acrescentando que, no presente contexto, isto significa que a clareira é o próprio fenômeno, aquilo que deve tornar-se questionável para o nosso pensamento.

O que aqui é pensado como a clareira que primeiro concede o aparecimento de algo, numa concessão que é ela própria o deixar aparecer e deixar brilhar (Scheinenlassen: GA14, 71), não é, de fato, outra coisa senão a clareira que em Ser e Tempo foi identificada com Dasein, como a revelação que primeiro clarificou e deixou acontecer o ser dos entes em geral no Aí. No entanto, esta clareira está agora a ser pensada de forma algo diferente. Enquanto em Ser e Tempo se dizia que o acontecimento da clareira era possibilitado pela temporalidade ekstática e, em particular, pela unicidade do horizonte aberto da temporalidade que dava origem à transcendência do mundo — um horizonte cuja própria abertura se tornou cada vez mais questionável nos cursos subsequentes, como vimos -, a desobstrução é agora pensada já não em termos horizonais-transcendentais, nem mesmo em termos de diferença ontológica. Na aula de 1964, pelo contrário, o pensamento é agora convidado a colocar a questão de saber “se a clareira, a livre abertura, não será aquilo em que só o espaço puro e o tempo ekstático e tudo o que neles se torna presença e ausência têm primeiro o lugar que reúne e abriga tudo” (GA 14, 81). A clareira não é em si mesma algo presente, mas aquilo dentro do qual a vinda à presença pode ocorrer primeiro, aquilo que abre caminho para essa vinda à presença. Não é um fenômeno estático, mas um acontecimento, um evento que permite chegar à presença e entrar na ausência. Em vez do horizonte unitário e ekstático de uma transcendência fundada na diferença ontológica, encontramos o acontecimento de um “ajuntamento” que permite que as coisas cheguem à presença — permite que a fenomenalidade ocorra na reunião dos seres numa única presença — mas também, nesse mesmo ajuntamento, “abriga” e preserva os fenômenos na sua própria presença e ausência. A clareira prevalece, “mantém o controle” (waltet).

original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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