Marquet (1995:217-218) – o corpo

destaque

O meu corpo só é meu na medida em que é adequado ao imperativo da minha singularidade: é enquanto tal que entra no campo dos fenômenos da consciência, daí a ilusão habitual de que esta mobilização é total e definitiva. De fato, o corpo não fornece à minha história mais do que um fundamento incuravelmente anônimo, impessoal, incontrolável; em si mesmo, ele permanece estranho à minha consciência — introduz no seu fluxo as suspensões, as ausências, os espaços em branco que são o sono, o desmaio, até à evasão última da morte. A estranheza fundamental do corpo é o que dá a qualquer fenomenologia o seu limite intransponível, na medida em que só o alcança, na melhor das hipóteses, sob a forma superficial do organismo domesticado, daquele pelo qual me torno presente ao mundo e capaz de intervir nele através dos meus esforços. O corpo profundo, o corpo autêntico, não tem nada a ver com a presença; ele permanece, no fundo de mim, o núcleo inquebrável da noite, o monstro adormecido cuja revolta, insidiosa ou catastrófica, perturba periodicamente (e uma vez, definitivamente) o edifício da consciência, impedindo o sujeito de coincidir com o acontecimento da sua história, tal como esta o impede de coincidir com a vida.

original

[MARQUET, Jean-François. Singularité et événement. Grenoble: J. Millon, 1995]

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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