Luijpen: Corporalidade Humana

Falando do corpo humano, urge, antes de tudo, que tomemos precaução para estar certos de tratarmos realmente do corpo humano. Caso contrário, ver-nos-íamos levados a falar do corpo humano como “um” corpo pertencente ao grande grupo “de” corpos,1 dos quais a gente se ocupa quando diz, p. ex., com o físico: “se um corpo, todo ou em parte, for mergulhado num fluido, perde aparentemente etc, etc.” Quem fala assim do corpo humano, entretanto, deixa totalmente de ver o humano do corpo humano. O corpo humano é humana porque é “meu”, “teu”, “dele” ou “dela”, a saber, o corpo-de-um-sujeito.2 Trata-se de uma participação no sujeito e o sujeito está imerso no corpo. Minhas mãos são “eu-que-pego”, meus pés são “eu-que-ando”, meus olhos são “eu-que-vejo”, meus ouvidos são “eu-que-ouço”. Consequentemente, meu corpo não se acha como uma coisa entre outras.3 Minhas mãos não estão no mundo preensível, meus pés não pertencem ao mundo em que se anda, meus olhos não se acham no mundo visível nem meus ouvidos no mundo sonoro. O corpo humano encontra-se do lado do sujeito. Assim considerado deve dizer-se que o homem é seu corpo.4

O corpo humano tampouco significa o que dele se diz na biologia, na fisiologia e na anatomia.5 Nos livros dessas disciplinas não ocorre o corpo humano, porque “eu”, “tu”, “ele” ou “ela” não aparecem aí. Não queremos, naturalmente, dizer que a biologia, a fisiologia e a anatomia nunca falam a respeito, mas que não exprimem a humanidade do corpo humano.6 Além disso, as citadas ciências não apreendem aquilo de [56] que falam, ao negligenciarem o original “saber a respeito do corpo” que é o próprio sujeito como cogito encarnado.

Compreendido esse ponto, vê-se também que o “meu” corpo representa a transição de “mim” para meu mundo, que é o lugar em que me aproprio de meu mundo,7 que me enxerta nas coisas e me garante aí um ponto de vista sólido ou lábil. Porque tenho a mão com cinco dedos, o mundo é preen-sível de certa maneira, diversa do que se eu tivesse em cada mão só um dedo; porque tenho pés, posso andar no mundo de certo modo, diferente do que se eu tivesse asas ou barbatanas; porque tenho ouvidos, o mundo é para mim um mundo sonoro; porque tenho olhos, o mundo é para mim campo visual. É da perspectiva do meu corpo que acho uma montaha alta e baixa a calçada, que digo estar longe Sírio e minha escriva-niha perto,8 que chamo o fogo quente e o gelo frio. Tudo o que no mundo se designa como duro, mole, angular, agudo, viscoso, vermelho, amarelo, violeta, espacial, leve, pesado, firme, saboroso, nutritivo, digestivo, oloroso, mal-cheiroso, grande, pequeno e outras qualidades, indica o corpo humano. Uma bicicleta designa uma posição e movimentos do corpo humano, o mesmo podendo dizer-se do futebol, da cama, da casa, da porta, do quarto, ou seja, em suma, de todos os objetos culturais.

Meu corpo, portanto, está do lado do sujeito que sou, mas, ao mesmo tempo, enreda-me no mundo das coisas. Meu corpo abre-me para o mundo, ou, ainda melhor, abre-me em direção ao mundo, e constitui meu ponto de vista nele.9 Mantém o espetáculo permanentemente vivo, animando-o e nutrindo-o.10 Ao desintegrar-se meu corpo, também meu mundo cai em pedaços, e o inteiro desfazer-se de meu corpo significa um rompimento com o mundo e igualmente a morte, o fim de meu ser como ser-consciente-no-mundo, o fim de meu ser-homem.11 [57] Refletido sobre o corpo humano, pois, encontramos o sujeito, que está mergulhado no corpo e por ele está envolvido no mundo. Achamos o mundo que, como um todo significativo, se prende ao corpo, o qual, enquanto humano, indica o sujeito. Eis o homem como existência.

  1. EN, p. 278.[]
  2. “Abstraindo do índice próprio a meu corpo — enquanto é mew corpo — e considerando-o como um corpo entre outros em número ilimitado, serei levado a tratá-lo como um objeto, como apresentando os caracteres fundamentais pelos quais se define a objetividade. Torna-se desde então matéria de conhecimento científico; problematiza-se, diria eu, mas somente com a condição de o olhar como não-meu”. RI, p. 31.[]
  3. “Meu corpo, tal como é para mim, não me aparece no meio do mundo”. EN, p. 365.[]
  4. JM, p. 301.[]
  5. “No tocante ao corpo, e mesmo ao corpo de outrem, devemos aprender a distingui-lo do corpo objetivo como o descrevem os livros de fisiologia”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 403.[]
  6. “… o corpo objetivo não é a verdade do corpo fenomenal, i. e.„ a verdade do corpo como o vivemos; não passa de uma imagem empobrecida, e o problema das relações entre a alma e o corpo não diz respeito ao corpo objetivo, que tem só uma existência conceptual, mas ao corpo fenomenal”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 493.[]
  7. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 180.[]
  8. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 502.[]
  9. “… meu corpo é também o que me abre para o mundo, onde me põe em situação”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 192.[]
  10. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 235.[]
  11. “Ora, se o mundo se pulveriza ou se desloca, é porque o corpo próprio cessou de ser o corpo cognoscente e de envolver todos os objetos numa apreensão única”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 327.[]