Na opinião de Descartes, temos só uma ideia da matéria que obedece ao critério da “clareza” e “distinção”, a saber, o conceito da “extensão”, aplicando-se tanto ao corpo humano como às coisas do mundo. Tudo o que for material será, pois, para Descartes, essencialmente extenso, quantitativo e nada mais. São, porém, só as ciências naturais que operam com a ideia de “quantidade”. Portanto, a concepção cartesiana a respeito da realidade do corpo e das coisas mundanas é cientista. O que as ciências naturais não conseguem exprimir pode talvez ter significação para a prática da vida cotidiana, mas não para a “ciência admirável”, onde se trata de uma indubitável certeza acerca do verdadeiro e do real.
Essa concepção acarreta graves consequências para a ideia cartesiana do homem. De um lado, o homem é uma res cogitam, uma substância que se pensa a si mesma; de outra parte, é também uma res extensa, uma substância extensa. Desde que a realidade material, para Descartes, não é mais que o quantitativo, qualquer transformação ou movimento não passa, por si e necessariamente, de um fenômeno espacial. O corpo “humano”, portanto, é só “quantidade que se move espacialmente”, uma máquina, objeto da mecânica. O homem consta então de duas substâncias, distintas é independentes por princípio e essencialmente. O filósofo não deixou de verificar, porém, que a alma e o corpo constituem certa unidade. Provam-no os sentimentos de fome, sede e dor. Quando uma ferida me causa dor, a res cogitans não o percebe como um piloto que nota ter quebrado alguma coisa em seu navio.1 Esses sentimentos mostram que há uma “mistura do espírito com o corpo”, muito mais íntima que a unidade de um piloto com seu navio. Vê-se assim forçado a admitir certa influência mútua entre a alma e o corpo. “Propriamente” tal coisa não deveria ser possível, mas o fato é inegável. O filósofo tentou resolver a dificuldade dando à alma um lugar na glândula pineal. A alma torna-se capaz de influir nos movimentos do corpo mediante os “espíritos animais”. Estes, por sua vez, fazem a alma perceber os movimentos do corpo. O próprio Descartes, contudo, não se sentiu satisfeito com essa solução do problema. Não é de estranhar, porque procurava responder à seguinte questão: como podem perfazer uma unidade essencial duas substâncias que não são essencialmente uma unidade ?
[LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973