- Stefano Pivatto (coord.)
- Original
Stefano Pivatto (coord.)
A retomada da ontologia pela filosofia contemporânea tem de particular o fato de que o conhecimento do ser em geral – ou a ontologia fundamental – supõe uma situação de fato para o espírito que conhece. Uma razão libertada das contingências temporais – alma coeterna às ideias – é a imagem que se faz dela mesma uma razão que se ignora ou se esquece, uma razão ingênua. A ontologia, dita autêntica, coincide com a facticidade da existência temporal. Compreender o ser enquanto ser é existir. Não que o aqui embaixo, pelas provações que impõe, eleve e purifique a alma e a torne capaz de adquirir receptividade em relação ao ser. Não que o aqui embaixo abra uma história cujo progresso seria o único meio de tornar pensável a ideia do ser. O aqui embaixo não deriva seu privilégio ontológico nem da ascese que comporta, nem da civilização que suscita. Já nas suas preocupações temporais se soletra a compreensão do ser. A ontologia não se realiza no triunfo do homem sobre a sua condição, mas na própria tensão em que esta condição se assume.
Esta possibilidade de conceber a contingência e a facticidade, não como fatos oferecidos à intelecção, mas como ato da intelecção – esta possibilidade de mostrar, na brutalidade do fato e dos conteúdos dados, a transitividade do compreender e uma “intenção significante” – possibilidade descoberta por Husserl, mas por Heidegger ligada à intelecção do ser em geral – constitui a grande novidade da ontologia contemporânea. A partir daí, a compreensão do ser não supõe apenas uma atitude teorética, mas todo o comportamento humano. O homem inteiro é ontologia. Sua obra científica, sua vida afetiva, a satisfação de suas necessidades e seu trabalho, sua vida social e sua morte articulam, com um rigor que reserva a cada um destes momentos uma função determinada, a compreensão do ser ou a verdade. Nossa civilização inteira decorre desta compreensão – mesmo que esta seja esquecimento do ser. Não é porque há o homem que há verdade. É porque o ser em geral se encontra inseparável de sua possibilidade de abertura – porque há verdade – ou, se se quiser, porque o ser é inteligível é que existe humanidade.
O retorno aos temas originais da filosofia – e é por isso ainda que a obra de Heidegger continua a impressionar – não procede de uma piedosa decisão de retornar, enfim, a não sei qual philosophia perennis, mas de uma atenção radical dada às preocupações prementes da atualidade. A questão abstrata da significação do ser, enquanto ser, e as questões da hora presente convergem espontaneamente.
Original
(LEVINAS, Emmanuel. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Tr. Pergentino Stefano Pivatto (coord.), Evaldo Antônio Kuiava, José Nedel, Luiz Pedro Wagner, Marcelo Luiz Pelizolli. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 21-23)