Levinas (EN:21-23) – O homem inteiro é ontologia

Stefano Pivatto (coord.)

A retomada da ontologia pela filosofia contemporânea tem de particular o fato de que o conhecimento do ser em geral – ou a ontologia fundamental – supõe uma situação de fato para o espírito que conhece. Uma razão libertada das contingências temporais – alma coeterna às ideias – é a imagem que se faz dela mesma uma razão que se ignora ou se esquece, uma razão ingênua. A ontologia, dita autêntica, coincide com a facticidade da existência temporal. Compreender o ser enquanto ser é existir. Não que o aqui embaixo, pelas provações que impõe, eleve e purifique a alma e a torne capaz de adquirir receptividade em relação ao ser. Não que o aqui embaixo abra uma história cujo progresso seria o único meio de tornar pensável a ideia do ser. O aqui embaixo não deriva seu privilégio ontológico nem da ascese que comporta, nem da civilização que suscita. Já nas suas preocupações temporais se soletra a compreensão do ser. A ontologia não se realiza no triunfo do homem sobre a sua condição, mas na própria tensão em que esta condição se assume.

Esta possibilidade de conceber a contingência e a facticidade, não como fatos oferecidos à intelecção, mas como ato da intelecção – esta possibilidade de mostrar, na brutalidade do fato e dos conteúdos dados, a transitividade do compreender e uma “intenção significante” – possibilidade descoberta por Husserl, mas por Heidegger ligada à intelecção do ser em geral – constitui a grande novidade da ontologia contemporânea. A partir daí, a compreensão do ser não supõe apenas uma atitude teorética, mas todo o comportamento humano. O homem inteiro é ontologia. Sua obra científica, sua vida afetiva, a satisfação de suas necessidades e seu trabalho, sua vida social e sua morte articulam, com um rigor que reserva a cada um destes momentos uma função determinada, a compreensão do ser ou a verdade. Nossa civilização inteira decorre desta compreensão – mesmo que esta seja esquecimento do ser. Não é porque há o homem que há verdade. É porque o ser em geral se encontra inseparável de sua possibilidade de abertura – porque há verdade – ou, se se quiser, porque o ser é inteligível é que existe humanidade.

O retorno aos temas originais da filosofia – e é por isso ainda que a obra de Heidegger continua a impressionar – não procede de uma piedosa decisão de retornar, enfim, a não sei qual philosophia perennis, mas de uma atenção radical dada às preocupações prementes da atualidade. A questão abstrata da significação do ser, enquanto ser, e as questões da hora presente convergem espontaneamente.

Original

La reprise de l’ontologie par la philosophie contemporaine a ceci de particulier que la connaissance de l’être en général -ou l’ontologie fondamentale — suppose une situation défait pour l’esprit qui connaît. Une raison affranchie des contingences temporelles – âme coétemelle aux Idées – c’est l’image que se fait d’elle-même une raison qui s’ignore ou s’oublie, une raison naïve. L’ontologie, dite authentique, coïncide avec la facticité de l’existence temporelle. Comprendre l’être en tant qu’être – c’est exister icibas. Non pas que l’ici-bas, par les épreuves qu’il impose, élève et purifie l’âme et la rende à même d’acquérir une réceptivité à l’égard de l’être. Non pas que l’ici-bas ouvre une histoire dont le progrès seul rendrait pensable l’idée de l’être. L’ici-bas ne tient son privilège ontologique ni de l’ascèse qu’il comporte, ni de la civilisation qu’il suscite. Déjà dans ses soucis temporels s’épelle la compréhension de l’être. L’ontologie ne s’accomplit pas dans le triomphe de l’homme sur sa condition, mais dans la tension même où cette condition s’assume.

Cette possibilité de concevoir la contingence et la facticité, non pas comme des faits offerts à l’intellection, mais comme l’acte de l’intellection – cette possibilité de montrer dans la brutalité du fait et des contenus donnés la transitivité du comprendre et une « intention signifiante » – possibilité découverte par Husserl, mais rattachée par Heidegger à l’intellection de l’être en général -constitue la grande nouveauté de l’ontologie contemporaine. Dès lors, la compréhension de l’être ne suppose pas seulement une attitude théorétique, mais tout le comportement humain. Tout l’homme est ontologie. Son œuvre scientifique, sa vie affective, la satisfaction de ses besoins et son travail, sa vie sociale et sa mort articulent, avec une rigueur qui réserve à chacun de ces moments une fonction déterminée, la compréhension de l’être ou la vérité. Notre civilisation tout entière découle de cette compréhension – celle-ci fût-elle oubli de l’être. Ce n’est pas parce qu’il y a l’homme qu’il y a vérité. C’est parce que l’être en général se trouve inséparable de son apérité – parce qu’il y a vérité, ou, si l’on veut, parce que l’être est intelligible qu’il y a humanité.

Le retour aux thèmes originels de la philosophie – et c’est par là encore que l’œuvre de Heidegger demeure frappante – ne procède pas d’une pieuse décision de retourner enfin à je ne sais quelle philosophia perennis, mais d’une attention radicale prêtée aux préoccupations pressantes de l’actualité. La question abstraite de la signification de l’être en tant qu’être et les questions de l’heure présente se rejoignent spontanément.

(LEVINAS, Emmanuel. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade. Tr. Pergentino Stefano Pivatto (coord.), Evaldo Antônio Kuiava, José Nedel, Luiz Pedro Wagner, Marcelo Luiz Pelizolli. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 21-23)