Levinas (1963:15-18) – o que existe e a própria existência

Paul Albert Simon

A distinção entre o que existe e essa própria existência, entre o indivíduo, o gênero, a coletividade, Deus — que são seres designados por substantivos — e o evento ou ato de sua existência, impõe-se à meditação filosófica e para ela se apaga com a mesma facilidade. Há como que uma vertigem para o pensamento, ao curvar-se sobre o vazio do verbo existir, de que não se pode, ao que parece, nada dizer e que somente se torna inteligível em seu participio — o existente —, no que existe. O pensamento desliza insensivelmente da noção do ser como ser, daquilo por que um existente existe, à ideia de causa da existência, de um “ente em geral”, de um Deus, cuja essência, a rigor, apenas conterá a existência — mas nem por isso deixará de ser um “ente” e não o fato ou a ação, ou o evento puro ou a obra de ser. Esta última será compreendida em sua confusão com o “ente”.

A dificuldade de separar ser e “ente”, e a tendência a encarar um no outro, certamente nada têm de acidental. Elas vêm do hábito de situar o instante, átomo de tempo, além de todo evento. A relação entre “ente” e “ser” não liga dois termos independentes. O “ente” fez contrato com o ser; não se pode isolá-lo. Ele é. Ele já exerce sobre o ser o próprio domínio que o sujeito exerce sobre o atributo. Ele o (15) exerce num instante que, para a análise fenomenológica, é indecomponível.

No entanto, é possível perguntar-se se essa aderência do “ente” ao ser é simplesmente dada no instante; se ela não é cumprida pela própria estância do instante; se o instante não é o próprio evento pelo qual no puro ato, no puro verbo de ser, no ser em geral, põe-se um “ente”, um substantivo, que se assenhoreia dele; se o instante não é a “polarização” do ser em geral. O início, a origem, o nascimento oferecem precisamente uma dialética em que esse evento no seio do instante torna-se sensível. Para o “ente” que começa, não há somente a encontrar uma causa que o cria, mas a explicar o que, nele, acolhe a existência. Não que o nascimento seja a recepção de um depósito ou de um dom por um sujeito preexistente. Mesmo a criação ex-nihilo, que comporta uma pura passividade por parte da criatura, impõe-lhe, no instante do surgimento – que é ainda o instante da criação – um ato sobre seu ser, o domínio do sujeito sobre seu atributo. O começo já é esta posse e esta atividade de ser. O instante não é feito de um bloco: ele é articulado. É por esta articulação que ele se distingue do eterno, que é simples e alheio ao evento.

O que é o evento de ser, o ser em geral, destacado do “ente” que o domina? O que significa sua generalidade? Certamente outra coisa que não a generalidade do gênero. A “alguma coisa” em geral, a forma pura do objeto, que exprime a ideia do “ente” em geral, já se coloca acima do gênero, pois não descende dela para as espécies por adjunção de diferenças específicas. A ideia do “ente” em geral já merece o nome de transcendente que os aristotélicos medievais aplicavam ao um, ao ser e ao bem. Mas a generalidade do ser -daquilo que faz a existência do existente – não equivale àquela transcendência. O ser recusa-se a toda especificação e nada especifica. Ele não é nem uma qualidade que um objeto suporta, nem o suporte de qualidades, nem o ato de um sujeito – e, entretanto, na fórmula “isto é”, o ser torna-se atributo, já que somos imediatamente obrigados a declarar que este atributo nada acrescenta ao sujeito. Não é necessário, desse modo, ver a marca do caráter impessoal do ser em geral na própria dificuldade em compreender a categoria (16) segundo a qual o ser pertence a um “ente”? O ser em geral não se torna o ser de um “ente” por meio de uma inversão, mediante o evento que é o presente, e que constitui o tema principal deste livro? E se, por si mesmo, o ser se recusa à forma pessoal, como aproximá-lo?1

Original

  1. O início da presente Introdução foi publicado, seguido do parágrafo 2 do capítulo 3 deste trabalho, em Deucalion I sob o título II y a (“Há”).[↩]
  2. Le début de la présente Introduction a été publié, suivi du paragraphe 2 du chapitre 3 de ce travail, dans Deucalion I sous le titre IL Y A.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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