Jean-Louis Chrétien (1985:10-12) – o secreto

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Há um círculo do segredo, assim como há um círculo da compreensão. A hermenêutica alemã mostrou, com profundidade crescente, como a compreensão sempre precede a si mesma. Para compreender, é preciso já ter compreendido: não posso compreender um elemento de uma obra sem antes compreender o todo. E essa compreensão também é circular, pois envolve uma compreensão de si mesmo. Não posso explicar sem me explicar com o que estou interpretando. A inclusão do intérprete também é essencial aqui. É por isso que Heidegger pôde dizer que a dificuldade com o círculo hermenêutico não era sair dele, mas entrar nele [SZ:132]. De modo semelhante, meditar sobre o segredo pressupõe uma relação entre nosso ser e o segredo, e nos leva a descobrir que já pertencíamos a ele antes de meditarmos sobre ele. Esse pertencimento significa que o movimento por meio do qual descubro o segredo me descobre como sendo segredo e desconhecido para mim mesmo. A sombra lançada sobre mim pelo brilho do segredo é a garantia de sua verdadeira compreensão. A provação do segredo nos testa. Um segredo teria algum peso se sua descoberta não abalasse meus próprios alicerces? O que seria uma revelação de Deus se ela não perturbasse minha compreensão prévia do homem e, acima de tudo, de mim mesmo? As discussões dos teólogos cristãos sobre um estado hipotético de “natureza pura”, no qual o homem seria considerado independente de um fim sobrenatural e dos dons divinos que o ordenam e o conduzem a ele, mostram que não pode haver um prólogo humano silencioso para o diálogo entre Deus e o homem, nenhum terreno neutro que o amor já não tenha devastado. O excesso vem primeiro. Sempre fomos vítimas de uma história de amor que não é só nossa e que excede nossas próprias possibilidades. Quando a revelação chega até nós, ela obscurece a prestigiosa transparência em que acreditávamos estar. O segredo nos revela que nós mesmos estávamos sob disfarce. Uma ilustração decisiva disso é a tese cristã de que a revelação divina é necessária para conhecermos nosso pecado. Para saber que transgredi a lei, basta que eu me conheça, mas o amado deve me perdoar para que eu saiba o quanto falhei no amor. Quando o mistério de Deus brilha na palavra que ele me dá e, nesse brilho, me abre, me entrega e me revela seu segredo como tal, ele também me revela minha cegueira para mim mesmo e faz de mim para mim um segredo que somente ele pode dissipar. Pois — e essa é uma diferença inconfundível com o círculo hermenêutico — a inclusão no segredo divino só pode ser graciosa. Estamos no círculo do entendimento por nossa própria existência, mas o segredo deve se doar livremente e, ao se doar, nos levar para dentro de si para que sejamos incluídos. O brilho do segredo sobrenatural é infinitamente mais luminoso e infinitamente mais segredo do que o do segredo natural inicialmente evocado.

original

[CHRÉTIEN, Jean-Louis. Lueur du secret. Paris: L’Herne, 1985]

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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