Irigaray (1983) – o ser no ar

“Em que círculo estamos aqui, sem saída? É a eukyklos aletheia, a perfeita circularidade, pensada, por sua vez, como Lichtung, como a clareira do aberto? Mas então a tarefa do pensamento não se intitulará, em vez de Sein und Zeit, ser e tempo: Lichtung und Anwesenheit (clareamento e presença)? Mas de onde e como há a clareira (gibt es die Lichtung)? O que queremos dizer com “há” (es gibt)? A tarefa do pensamento, então, seria abandonar o pensamento que tem prevalecido até agora e determinar a atividade adequada do pensamento” (La fin de la philosophie et le tournant, em Questions IV, N. R. F., Gallimard, p. 139).

O fato de a ilusão da clareira nunca ter sido interrogada pelo pensamento, embora fosse a condição última da possibilidade; o fato de, desde o início, ter-se falado da necessidade do aberto como o locus de entrada na presença, mas que, no entanto, o aberto permanece impensado — embora reine no próprio ser, no estado de presença —, tal seria o esquecimento que subjaz à história da metafísica, acarretando assim o destino do ser como ente(s).

Mas em que palavras pré-socráticas se encontra uma evocação do aberto? No Poema de Parmênides. Já não é tarde demais para reabrir o selo de seu mistério? O aberto já está constituído como redondeza perfeita ou como o sem fundo. O círculo já se completou: em cada ponto, o começo e o fim coincidem, mas à custa de um abismo.

Que abismo? E por que deveríamos valorizar o coração que não treme quando está tão seguro do abismo? Por que a não-ocultação é assustadora, se não porque revela o abismo no qual a verdade se baseia? Por que escolher tal verdade? E quanto à tirania que ela corre o risco de trazer consigo, em virtude de seu pacto com o medo?

Para questionar o fato de que “É somente nessa aliança que se baseia qualquer pedido de uma possível lealdade do pensamento”, talvez precisemos tirar de Heidegger o chão sobre o qual ele tanto gostava de andar. Tirar esse chão firme, essa “ilusão” de um caminho que pode ser percorrido — mesmo que não leve a lugar algum — e trazê-lo de volta não apenas ao pensamento, mas ao mundo dos pré-socráticos.


A metafísica sempre pressupõe, de alguma forma, uma crosta sólida a partir da qual se pode construir. Portanto, uma física que favoreça, ou pelo menos tenha constituído, o plano sólido. Quer os filósofos se afastem dele, quer o modifiquem, o solo está sempre aí. Enquanto Heidegger não abandonar o “chão”, ele não abandonará a metafísica. A metafísica não está escrita nem na água, nem no ar, nem no fogo. Sua ek-sistance é fundada em sólidos. E seus abismos, seja abaixo ou acima, podem sem dúvida ser interpretados pelo esquecimento de elementos que não têm a mesma densidade.

O fim da metafísica seria prescrito por sua reintervenção na física atual? Mas a racionalidade filosófica não veria essas evidências? Será que elas permaneceriam tão veladas quanto o “esquecimento do ser”? Estamos falando do mesmo mal-entendido? A mesma incapacidade de traduzir realidades fluidas em forma discursiva? Heidegger, sem realmente dizer isso, talvez estivesse conduzindo o pensamento para essa questão? Se não fosse por seu amor quase exclusivo pela terra… seu desejo de permanecer nela para sempre? Apesar dessa estranha atração pela clareira do espaço aberto…


A clareira aberta, “o que” poderia ser? — poderíamos ter perguntado a ele. Essa antiga pergunta filosófica parece não ter sido feita. Ela era, sem dúvida, inocente demais. Muito ignorante. Muito simples. Muito pouco envolvida com a história da filosofia. Muito “sensível” ou muito “física”? Para não ter sido esquecida.

“Em que” é um ente, que pode ser colocado como uma pergunta. “Em que” o ser não é ‘colocado’. Ele é sempre pré-suposto. Pré-visível, pré-estabelecido. Pelo menos desde Parmênides: ser e pensar são a mesma coisa. E a pergunta sobre do que é feito o pensamento fica sem resposta.

O ser e o pensamento são feitos do mesmo material? Do mesmo elemento? Isso explicaria sua atração mútua? Seu amor a ponto de ser inseparável, pelo menos quando eles se entregam “sem se retirar”? O “existe” seria o mesmo para o ser e o pensamento? Pelo menos antes de se desvendarem nas faces de seus destinos: ser(es) e metafísica.

A questão permanece: o pensamento já não é um destino do ser? Ou o oposto? Então, como Parmênides consegue essa co-ocorrência? Quais são as propriedades desse “é” que faz com que eles se encontrem no Mesmo? O que circunscreve sua região como a mesma? Seria essa a base impensada de todo “destino” futuro?


“De que maneira isso é feito para que opere, antes de todo conhecimento e métodos de conhecimento — identidade, omoiôsis, adéquatio, etc. — a coexistência, a co-essência, a co-presença de dois? Antes de sua possível posição como “coisas” separadas. Como pode esse “é” ter tal poder de fundar o ser e a presença, enquanto desaparece no próprio ato de fundação? De modo que já tenha sido “usado” — e usando? — sem que nenhum nascimento tenha sido atribuído a ele. De modo que já deu origem ao ser sem qualquer início de ser.

Ou ainda: que consistência tem a essência do ser? Necessária para o surgimento de todo ente e de toda filosofia, e sempre já esquecida — impalpável, imperceptível, invisível, insensível, ininteligível — em sua matéria e em seu ato. “De que modo isso acontece para que permaneça invisível quando é a condição fundamental do visível, para que não seja posicionável quando é a condição de toda posição, para que não seja produzido e seja a condição de toda produção, para que não tenha origem, mas seja o próprio originário? De modo que confunde os dois em um no Mesmo sem que essa operação seja tecnicamente atribuível.

De que forma é? Diáfano, translúcido, transparente. Transcendente? Mediação, meio fluido que coloca o todo em uma relação desimpedida consigo mesmo, e algumas de suas partes em relação umas com as outras de acordo com suas propriedades: real ou decretada “verdadeira”.

Real? Na esfera do ser. Em outras palavras, no círculo determinado como o do pensamento em função do nada-pensável que ele é. A decisão de envolver, cercar, fechar, acabar com o impensável. Nomeá-lo como o que está além ou abaixo de todos os significados que ele reúne e vincula em seu Todo, o que nomeia sem jamais ser capaz de nomear a si mesmo. Aquele que está além de qualquer declaração, de qualquer afirmação. Ou posição, fenômeno, forma. Permanecendo a condição de possibilidade, o recurso, o fundo sem fundo.

Em que está? No ar.


O significado dessa palavra? Na esfera já determinada pela omissão de ar, estão incluídos os seguintes significados: aparência, expressão, mímica, aparecer, parecer, assemelhar-se, etc. E até mesmo: uma peça musical escrita para uma única voz, acompanhando palavras; melodia. Esses possíveis “significados” do ar sempre foram ouvidos na história da filosofia e sempre foram objeto de estimativas, avaliações, análises de valor, etc. Sua relação com a “verdade” e o ser sempre foi questionada. De fato, esses sentidos do ar são agora a questão, o tema ou o motivo mais considerado na filosofia. Não seriam as aparições, as aparências, o parecer e o assemelhar-se, hoje, o que o ser está destinado a se tornar?

Essa nova figura do ser teria suas produções, seus produtores e consumidores das artes visuais e, mais sutilmente perto do ser, seus músicos. Mas será que todos eles “esqueceram o ser”? Mais exatamente, eles acham que podem se livrar do ser, esquecendo-se do que ele é.

É compreensível que a filosofia tenha morrido — sem ar. O ser, pelo menos, tinha um pouco de reserva?

Assim: a clareira do aberto. Esse campo, ou espaço livre, onde o ar ainda pode ser dado.

O que não é isento de riscos. Apontar que o ar está na base sem fundo da metafísica é danificá-la de cima a baixo. Desfocá-lo em toda parte. Tornar suas propriedades cada vez mais elusivas e expansivas, compressíveis e elásticas. Nada permanece o mesmo no ar. Livre?