Ipseidade (Monticelli)

(Monticelli1997:208)

O outro traço fundamental da noção de autos é aquele que se opõe ao caráter do hetero, manifestando-se na oposição entre autonomia e heteronomia. As vivências que constituem este outro aspecto do ser-sujeito — que “preenchem” este significado fundamental do termo — são as ações através das quais nos experimentamos como causa dos efeitos produzidos, ou seja, como agentes. O conteúdo determinado da selfhood [autoconsciência] manifestada no agir é a espontaneidade.

Ipseidade e espontaneidade — eis, portanto, os traços essenciais do ser-si-mesmo enquanto viver, sentir e agir. Importa notar que tanto a ipseidade quanto a espontaneidade já estão presentes no sentir e no agir não-reflexivos, pois são precisamente constitutivos dessas experiências.

Confesso meu limitado conhecimento sobre a vida animal. Mas no ser humano, as vivências afetivas e ativas possuem por essência a capacidade de se tornarem reflexivas, isto é, de serem explicitamente apreendidas como próprias. Esta é precisamente a diferença entre, por exemplo, simplesmente sofrer e saber que sou eu quem sofre, entre consciência irrefletida e consciência de si.

Utilizo deliberadamente o verbo “saber” para destacar a diferença crucial entre:

  1. O modo não-temático de autoapresentação (como ocorre no simples ato de sofrer)
  2. E este modo temático que, somente ele, estabelece uma distinção clara entre o sujeito que sofre e o objeto do sofrimento

Trata-se da diferença fundamental entre ser e ter:

  • No sofrimento irrefletido, sou pura e simplesmente esse sofrer, identifico-me completamente com ele
  • Somente quando objetivamos essa dor, colocando-a diante de nós mesmos, é que podemos distingui-la daquilo que somos, transformando-a em algo que temos (“tenho dor de cabeça”, “tenho uma dor no peito”)

Onde existe esta possibilidade essencial de objetivação ou reflexão, aí encontramos a estrutura egológica da existência. Defino, portanto, ego como todo sujeito que se dá a si mesmo de maneira essencial, explícita e temática.

Como o próprio termo “objetivação” sugere, esta possibilidade está intrinsecamente ligada à capacidade de representação pura das coisas como objetos — incluindo o próprio corpo e a própria psique — capacidade essa que tradicionalmente denominamos “espírito”.

A título de observação: denominamos “pessoa” todos os sujeitos — e somente eles — cuja vida afetiva e ativa possui esta estrutura egológica. Isto implica, entre outras coisas, que:

  • Apenas uma pessoa pode contemplar o mundo de maneira plenamente objetiva ou impessoal
  • Contudo, esta capacidade por si só não é suficiente para constituir uma pessoa

 

 

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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