O cogito encontra a sua formulação última na proposição videre videor: parece-me que eu vejo. Lembremo-nos brevemente do contexto em que se inscreve essa asserção decisiva. Tanto na Segunda Meditação como nos Princípios (I, 9), Descartes acaba de praticar a epoché radical, em sua linguagem, duvidou de tudo, desta terra na qual põe os pés e anda, de seu quarto e de tudo o que vê nele, do mundo inteiro, o qual talvez não passasse por fim de ilusão e sonho. Em todo caso, ele vê tudo isso, mesmo que essas aparências sejam falsas e ele durma. A epoché, no entanto, atinge o próprio Descartes na medida em que ele pertence a este mundo, enquanto homem. Logo, ela atinge seu corpo, suas pernas e seus olhos: nada disso existe. Que significa, então, ver, ouvir, sentir calor para um ser que não tem olhos, nem corpo (58) e que talvez nem exista? “At certe videre videor, audire, calescere”: “Ao menos, parece-me que eu vejo, que eu ouço, que eu me aqueço” 1. Por acaso, o que permanece no término da epoché não será essa visão, a pura visão considerada em si mesma, reduzida a si mesma, a essa pura experienciação (épreuve) de si mesma, abstração feita de toda relação a presumíveis olhos, a um dito corpo, a um pretendido mundo? Mas se a pura visão subsiste como tal, a título de “fenômeno”, o que é visto nela não subsistirá também, a esse título, a título de simples fenômeno: essas árvores com suas formas coloridas ou pelo menos essas aparências de formas e de cores, esses homens com seus chapéus ou, pelo menos, essas aparências de manchas e de vestes? Não continuarão a aparecer, essas aparências, tais como elas aparecem? Assim consideradas, não permanecerão a título de dados indubitáveis?
A essa questão, repleta de consequências, o cartesianismo do começo respondeu pela negativa. Essas formas não são tal como acredito vê-las, pois eu acredito ver formas reais, ao passo que elas pertençam, talvez, ao universo do sonho no qual nada há de real. Sejamos mais precisos: uma visão que não é visão dos olhos é capaz de ver algo completamente distinto das pretendidas formas e cores; ela vê que dois mais três é igual a cinco, que a soma dos ângulos internos de um triângulo sempre equivale a dois ângulos retos (a 180°) etc. Ora, Descartes supõe que tudo isso possa ser falso, e chega até a afirmar tal falsidade. Entretanto, se tais conteúdos são falsos, embora claramente apercebidos, só pode ser porque a própria visão é falaciosa, porque o olhar é, em si mesmo, de tal natureza que o que vê não é tal como vê, nem mesmo é em absoluto; só pode ser propriamente porque a visão esteja distorcida e porque, de certo modo, não veja, e esteja, pois, acreditando ver algo quando nada existe, acreditando nada ver aí, onde talvez tudo já esteja presente.
O caminho bem conhecido da epoché cartesiana se afunda bruscamente sob nossos passos e tudo se oculta. O que essa epoché produz, o que se cumpre propriamente nela pela primeira vez é, diríamos, a clara diferença entre o que aparece e o aparecer como tal, de tal maneira que, pondo provisoriamente fora de cena o primeiro, libera o segundo e o propõe como fundamento. Ora, é esse fundamento que vacila agora, é o próprio aparecer e como tal que está em questão — na medida em que esse aparecer é um ver e na medida em que o texto cartesiano o designa assim. O ver é recusado porque o que é visto não é, de modo exato, tal como nós o vemos, porque a aparência na qual ao menos se acreditava — porquanto se limitava a ela (59) como a uma simples aparência — ser tal como aparece — não é isso e talvez não o seja em absoluto. A dúvida, como se sabe, alcança todas as suas dimensões tão-somente quando, como dúvida metafísica e hiperbólica, cumpre a subversão das verdades eternas. Ora, uma tal subversão das essências apenas é possível se previamente pôr em causa outra coisa, a saber, o meio de visibilidade em que tais conteúdos essenciais são visíveis. É esse meio de visibilidade e o ver que se funda nele que, no término da epoché, perdem seu poder de evidência e de verdade, o seu poder de manifestação.
- Seconde Méditation, FA, II, p. 186, 422 ; AT, VIII, p. 29, IX, p. 23.[↩]