Henry (2002b:93-96) – No mundo, a vida não existe

tradução

O problema é pensar o corpo vivente, esse corpo que nunca deixamos de fazer a prova silenciosa em nossa vida cotidiana e que pomos em obra em cada uma de nossas ações – não mais a partir do mundo e da experiência do mundo, nem a partir do corpo objetivo. O que se trata é partir não do mundo, mas da vida e se perguntar a si se, nesta vida, podemos entender como nela pode nascer algo como este corpo vivente do qual temos a experiência – e uma experiência mais certa do que a experiência do corpo objetivo. (…)

Evidentemente, se queremos ir da vida ao corpo vivente, propondo um tipo de gênese deste corpo vivente no interior do qual cada um de nós nos encontramos postos, teríamos que saber previamente o que é a vida. Ora, para falar da vida, nenhuma época é mais mal situada do que a nossa. Afirmação paradoxal: não é a ciência que lida com a vida, a biologia, a que, no século XX, fez os progressos mais fulgurantes – progressos tais que puseram em questão o nosso modo de vida e levantaram o que se chama de “problemas sociais”. E, no entanto, um biólogo muito famoso disse: “Não questionamos mais a vida nos dias de hoje nos laboratórios” (François Jacob). Esta proposição eu a creio profundamente verdadeira e ela parece tal se nos a referirmos ao que chamei nesta manhã o ato proto-fundador da ciência moderna e, consequentemente, da biologia moderna, quer dizer a decisão de Galileu de excluir do nosso conhecimento do universo material tudo o que se refere a qualidades sensíveis e, de uma maneira geral, da sensibilidade, da afetividade, da subjetividade, da vida, para não reter como constitutivos deste universo real senão suas determinações geométricas e matemáticas. A determinação geométrica ou matemática destas partículas materiais, quer dizer algoritmos. ao passo que tudo o que se depreende da subjetividade vivente seja deixado de lado por esta ciência como a condição mesma de seu desenvolvimento. Então, não surpreende que, ao final deste desenvolvimento, a biologia apenas redescubra o pressuposto de partida da modernidade, a saber, a colocação entre parênteses da vida. Para a biologia, não há vida.

Se a vida é eliminada a priori da biologia no próprio pressuposto desta mesma ciência, onde a encontraremos? Seria no mundo? No mundo, não vemos, ao lado de coisas inanimadas, seres viventes, corpos viventes e precisamente nossa vida mais ou menos semelhante à dos animais?

Estou assumindo um segundo risco, o de formular desde o início a tese que governará toda essa análise. No mundo, a vida não existe. No mundo, a vida nunca se mostra e é também por isso que está ausente do campo da biologia, porque esta, apesar da abstração de suas metodologias, ainda busca a vida no mundo, nunca deixando de se concentrar neste fora, que é o mundo. No mundo, é verdade, vemos seres viventes, corpos viventes, mas jamais a vida. Este caráter de ser vivente é uma significação que é inerente à percepção dos corpos viventes e que desempenha um papel essencial nesta percepção. É este caráter de ser vivente, é esta significação de ser vivente que alcançamos na percepção destes corpos, jamais a vida. É precisamente porque nunca atingimos a vida em ela mesma que só a atingimos na forma de significação irreal, quer dizer de uma irrealidade. Esta significação pode muito bem investir o ser vivente e determinar por inteiro a percepção que dele temos, de tal maneira que estes olhos, como diz Husserl, são percebidos como “olhos que veem”, estas mãos são percebidas como “mãos que tocam”. Mas estas significações permanecem em sua irrealidade de princípio, não fazem precisamente senão significar a vida sem poder a dar em ela mesma, em pessoa, como dizem os fenomenologistas.

Original

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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