Um corpo inerte semelhante aos que se encontram no universo material — ou ainda os que se podem construir utilizando os processos materiais extraídos deste, organizando-os e combinando-os segundo as leis da física -, tal corpo não sente nem experimenta nada. Ele não se sente nem se experimenta a si mesmo, não se ama nem se deseja. Nem, menos ainda, sente ou experimenta, ama ou deseja nenhuma das coisas que o cercam. Segundo a observação profunda de Heidegger, a mesa não “toca” a parede contra a qual está colocada. O próprio de um corpo como o nosso, ao contrário, é que ele sente cada objeto próximo de si; percebe cada uma de suas qualidades, vê as cores, ouve os sons, inspira um odor, calcula com o pé a dureza de um chão, com a mão a suavidade de um tecido. E só sente tudo isso, as qualidades de todos esses objetos que compõem seu ambiente, só experimenta o mundo que o pressiona por todos dos lados, porque se experimenta antes de tudo a si mesmo, no esforço que faz para subir a ruela, na impressão de prazer em que se resume o frescor da água ou do vento.
Essa diferença entre os dois corpos que acabamos de distinguir — o nosso, que, por um lado, se experimenta a si mesmo ao mesmo tempo que sente o que o cerca e, por outro, um corpo inerte do universo, seja ele uma pedra no caminho ou as partículas microfísicas que se supõe a constituem —, nós a fixamos a partir de agora numa terminologia apropriada. Chamaremos carne ao primeiro, reservando o uso da palavra corpo para o segundo. Pois nossa carne não é senão isto que, experimentando-se, sofrendo-se, padecendo-se e suportando-se a si mesmo e, assim, desfrutando de si segundo impressões sempre renascentes, é, por essa mesma razão, (12) suscetível de sentir o corpo que lhe é exterior, de tocá-lo, bem como de ser tocado por ele — coisa de que o corpo exterior, o corpo inerte do universo material, é, por princípio, incapaz.
A elucidação da carne constituirá o primeiro tema de nossa investigação. Queremos falar dos seres encarnados que somos nós, os homens, desta condição singular que é a nossa. Mas esta condição, o fato de ser encarnado, nada mais é que a encarnação. Sucede, porém, que a encarnação não consiste em ter um corpo, em se propor desse modo como um “ser corporal” e, portanto, material, parte integrante do universo a que se confere o mesmo qualificativo. A encarnação consiste no fato de ter uma carne; mais, talvez: de ser carne. Seres encarnados não são, pois, corpos inertes que não sentem e não experimentam nada, sem consciência de si mesmos nem das coisas. Seres encarnados são seres padecentes, atravessados pelo desejo e pelo medo, e que sentem toda a série de impressões ligadas à carne porque estas são constitutivas de sua substância — uma substância impressionai, portanto, que começa e termina com o que experimenta.
Definida por tudo aquilo de que um corpo se acha desprovido, a carne não poderia confundir-se com ele; ela é antes, por assim dizer, o exato contrário. Carne e corpo opõem-se como o sentir e o não sentir — o que desfruta de si, por um lado; a matéria cega, opaca, inerte, por outro. Tão radical é essa diferença, que, por mais evidente que pareça, nos é muito difícil, e até impossível, pensá-la verdadeiramente. E isso porque ela se estabelece entre dois termos, um dos quais, afinal de contas, nos escapa. Se nos é fácil conhecer nossa carne porque ela não nos deixa nunca e se cola à nossa pele na forma dessas múltiplas impressões de dor e de prazer que nos afetam sem cessar de modo que cada um, com efeito, sabe muito bem, com um saber absoluto e ininterrupto, o que é sua carne — ainda que não seja capaz de exprimir conceptualmente esse saber -, totalmente diverso é nosso conhecimento dos corpos inertes da natureza material: ele vem perder-se e terminar numa ignorância completa.
Un corps inerte semblable à ceux qu’on trouve dans l’univers matériel — ou encore qu’on peut construire en utilisant les processus matériels arrachés à celui-ci, en les organisant et en les combinant selon les lois de la physique -, un tel corps ne sent et n’éprouve rien. Il ne se sent pas et ne s’éprouve pas lui-même, il ne s’aime ni ne se désire. Encore moins sent-il ou éprouve-t-il, aime-t-il ou désire-t-il aucune des choses qui l’entourent. Selon la remarque profonde de Heidegger, la table ne « touche » pas le mur contre lequel elle est placée. Le propre d’un corps comme le nôtre, au contraire, c’est qu’il sent chaque objet proche de lui ; il perçoit chacune de ses qualités, il voit les couleurs, entend les sons, respire une odeur, mesure du pied la dureté d’un sol, de la main la douceur d’une étoffe. Et il ne sent tout cela, les qualités de tous ces objets qui composent son environnement, il n’éprouve le monde qui le presse de toute part, que parce qu’il s’éprouve d’abord lui-même, dans l’effort qu’il accomplit pour gravir la ruelle, dans l’impression de plaisir en laquelle se résume la fraîcheur de l’eau ou du vent.
Cette différence entre les deux corps que nous venons de distinguer — le nôtre qui s’éprouve soi-même en même temps qu’il sent ce qui l’entoure d’une part, un corps inerte de l’univers d’autre part, qu’il s’agisse d’une pierre sur le chemin ou des particules micro-physiques censées la constituer -, nous la fixons dès maintenant dans une terminologie appropriée. Nous appellerons chair le premier, réservant l’usage du mot corps au second. Car notre chair n’est rien d’autre que cela qui, s’éprouvant, se souffrant, se subissant et se supportant soi-même et ainsi jouissant de soi selon des impressions toujours renaissantes, se trouve, pour cette raison, susceptible de sentir le corps qui lui est extérieur, de le toucher aussi bien que d’être touché par lui. Cela donc dont le corps extérieur, le corps inerte de l’univers matériel, est par principe incapable.
L’élucidation de la chair constituera le premier thème de notre recherche. Nous voulons parler des êtres incarnés que nous sommes, nous les hommes, de cette condition singulière qui est la nôtre. Mais cette condition, le fait d’être incarné, ce n’est rien d’autre que l’incarnation. Seulement l’incarnation ne consiste pas à avoir un corps, à se proposer de la sorte comme un « être corporel » et à ce titre matériel, partie intégrante de l’univers auquel on décerne le même qualificatif. L’incarnation consiste dans le fait d’avoir une chair — davantage peut-être : d’être chair. Des êtres incarnés ne sont donc pas des corps inertes qui ne sentent et n’éprouvent rien, n’ayant conscience ni d’eux-mêmes ni des choses. Des êtres incarnés sont des êtres souffrants, traversés par le désir et la crainte, ressentant toute la série des impressions liées à la chair parce que constitutives de sa substance — une substance impressionnelle donc, commençant et finissant avec ce qu’elle éprouve.
Définie par tout ce dont un corps se trouve dépourvu, la chair ne saurait se confondre avec lui, elle en est bien plutôt, si l’on peut dire, l’exact contraire. Chair et corps s’opposent comme le sentir et le non-sentir — ce qui jouit de soi d’un côté ; la matière aveugle, opaque, inerte de l’autre. Si radicale est cette différence que, pour évidente qu’elle paraisse, il nous est très difficile, voire impossible, de la penser véritablement. Et cela parce qu’elle s’établit entre deux termes, dont l’un, en fin de compte, nous échappe. S’il nous est aisé de connaître notre chair pour autant qu’elle ne nous quitte jamais et nous colle à la peau sous la forme de ces multiples impressions de douleur et de plaisir qui nous affectent sans cesse, en sorte que chacun en effet sait très bien, d’un savoir absolu et ininterrompu, ce qu’est sa chair — même s’il n’est pas capable d’exprimer ce savoir conceptuellement — tout autre est notre connaissance des corps inertes de la nature matérielle : elle vient se perdre et s’achever dans une ignorance complète.