Essa dissimetria marca a distância infinita que separa Cristo dos outros homens. É esta distância, aliás, o que Cristo não cessa de lembrar-lhes, no fundo, em cada uma de suas palavras e, assim, ao longo de todos os Evangelhos. A dissimetria, todavia, não deixa reconhecer de início sua verdadeira significação. Cristo parece opor-se aos homens compreendidos como seres naturais. Assim, a (182) filiação natural que parece convir a eles e que os dispõe no tempo do mundo segundo a ordem das gerações – José filho de Eli, filho de Matat, filho de Amós… – é brutalmente recusada e rompida por Cristo no que lhe concerne, como longamente estabelecemos. “Antes… Abraão… Eu.” Senhor de Davi. E enquanto Arqui-Filho engendrado antes da criação do mundo que Cristo, ao que parece, se separa radicalmente dos próprios homens, que eles “vêm ao mundo” e assim só aparecem nele. Mas quando, segundo o ensinamento do cristianismo, o homem é compreendido por sua vez enquanto Filho, sendo assim sua essência arrancada à verdade do mundo e retomada como a da Vida, a oposição entre Cristo e os homens já não pode repousar sobre o caráter natural destes últimos. Precisamente já não são seres naturais, já não pertencem ao mundo e já não se mostram nele. O homem natural é interditado no tempo mesmo em que sua condição de Filho é posta. E pois no plano da própria vida que se abre o abismo que separa Cristo dos homens, e é nesse plano que ele deve ser compreendido. E o que a análise do homem enquanto FILHO NO FILHO justamente estabeleceu. Algo como um eu vivente, um eu transcendental vivente, como nós o chamamos, só existe na Ipseidade original da Vida absoluta e por ela. “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi” (João 15,16). Ou seja, o mesmo que, em sua Ia Epístola, João formula desta maneira: “Quanto a nós, amemos, porque ele nos amou primeiro” (4,19). Que a Vida só chegue a cada vivente através da Ipseidade original em que ela se dá a si mesma é o que o contexto põe não menos claramente: “… Que o Pai vos dá tudo (…) em meu nome”. MHESV VII
A interpretação do homem como “filho de Deus”, mais precisamente como “FILHO NO FILHO”, é carregada de implicações múltiplas. Antes de buscar a elucidação destas, uma questão, todavia, parece não poder ser diferida. Se os homens são esses Filhos de Deus em Cristo, como explicar que tão pequeno número deles o saiba e recorde? Se eles trazem em si esta Vida divina e sua imensidão, porque não há outra Vida além daquela e por que os viventes não têm de ceder senão sob sua profusão, como compreender que eles sejam (186) tão infelizes? Porque, afinal de contas, não são as tribulações que vêm deste mundo o que os angustia. É consigo, na realidade, que eles estão tão descontentes. É sua própria incapacidade de realizar seus desejos e seus projetos, são suas hesitações, sua fraqueza, sua falta de coragem o que provoca no fundo deles mesmos o mal-estar que os acompanha ao longo de toda a sua lúgubre existência. Se eles não cessam de atribuir às circunstâncias ou aos outros a causa de seu fracasso, não o fazem senão para enganar-se a si mesmos e esquecer que tal causa está neles. Como diz Kierkegaard, não é por não se ter tornado César que alguém se desespera, mas por esse eu que não se tornou César. Mas como desesperar esse eu se ele não é nada menos que a vinda a nós de Deus em Cristo? Tal desespero só é possível se, de um modo ou de outro, o homem esqueceu o esplendor de sua condição inicial, de sua condição de Filho de Deus – de sua condição de “FILHO NO FILHO”. E esse esquecimento que é preciso tentar compreender. (187) MHESV VII