Henry (1985:343-345) – o inconsciente não tem existência teórica

Rodrigo Vieira Marques

A elaboração sistemática das estruturas fundamentais do aparecer tal como se prosseguiu através das problemáticas inaugurais de Descartes, de Schopenhauer e de Nietzsche, torna agora possível uma crítica radical da psicanálise, quer dizer, uma determinação filosófica do conceito de inconsciente. Sem dúvida que Freud tinha consciência de que uma tal determinação – escapava por completo à psicanálise, ao intentar desembaraçar-se de modo agressivo de uma questão sobre a qual a disciplina que acabava de fundar repousa por completo: “A questão relativa à natureza desse inconsciente não é… mais judiciosa, nem mais rica de perspectivas que (aquela) relativa à natureza do consciente”. A originariedade da psicanálise está, portanto, recusando toda abordagem conceitual, dada como especulativa, do inconsciente, em construí-lo a partir de um material patológico incontestável, como a única chave possível desse dado analítico, como a lei de inteligibilidade do que, sem ela, seria apenas incoerência e enigma. Daí que vai apenas um passo entre duas coisas pretender que só o analista que se ocupou de algum modo pessoal e concretamente, através de sintomas e resistências, com o inconsciente em ato e o tocou assim como que com o dedo – “habituamo-nos a manejar o inconsciente como algo palpável…” – saiba do que fala e possa sorrir das refutações abstratas. Mas a decisão de descartar toda a legitimação teórica em nome de uma prática foi sempre suspeita e Freud nunca pensou, parece-nos, que só um crente estivesse habilitado a tratar de religião.

O inconsciente não tem, então, outra existência teórica senão esta: ser o único princípio de explicação possível do material patológico, de tal (327) maneira, todavia, que a legitimação não dependa, de modo derradeiro, da pertença do princípio explicativo, mas do próprio material patológico enquanto tal, enquanto dado incontestável. Em que é que o material analítico é um dado incontestável? Enquanto aparece. Pode-se rejeitar verbalmente uma filosofia da consciência, pois é sobre a essência previamente desdobrada da própria consciência que repousa toda a problemática psicanalítica que se lhe pretende opor.

Assim também, os textos nos quais Freud situa explicitamente na consciência o ponto de partida, ou antes, o lugar de seu trabalho teórico são os mais numerosos: “…o fato de ser consciente… é o ponto de partida de todas as nossas investigações”. É verdade que há como que uma dupla motivação desse começo inevitável. Uma é explícita e repete-se ao longo de toda a obra. É o caráter lacunar do dado consciencial, que permanece ininteligível neste estado e reclama para ser compreendido a intervenção de outros processos que não aparecem, mas que a análise se revela capaz de reconstruir. No Compêndio de psicanálise de 1938, Freud dirá ainda: “todo o mundo está de acordo em pensar que os processos conscientes não formam séries fechadas sobre si mesmas e sem lacuna…”. Mas quando em presença de uma tal situação da filosofia da consciência, cedendo bruscamente todas as suas posições, se vê constrangida a confiar à subestrutura fisiológica o cuidado de preencher os vazios, de restabelecer a continuidade, de modo a ser o organismo a constituir o verdadeiro fundamento da vida consciencial reduzida, quer se queira ou não, a um epifenômeno, a psicanálise, pelo contrário, bate-se admiravelmente por reservar à psique o princípio de sua explicação. Ela não evita seguramente a grande clivagem do pensamento clássico entre o aparecer e o ser, sendo o primeiro, justamente, apenas a aparência do segundo, uma aparência que o oculta mais do que o revela ou que, na psicanálise, apenas o revela sob a forma de disfarces. Ao menos o ser é homogêneo na aparência, pertencendo como ela, à psique, de modo que a sua unidade, do homem e de sua vida fica salvaguardada. Mas o ser não é somente homogêneo à aparência que pretende fundar, ele é secretamente tributário dela, procede sempre dela e, finalmente, se encontra determinado por ela. Como diz, pois, Nietzsche: “O que é para mim a ‘aparência’! Não, em verdade, o contrário de um ser qualquer – e que eu posso dizer de um ser qualquer que não consegue enunciar os atributos de sua aparência!”. Tal é o verdadeiro motivo que constrange (328) a problemática do inconsciente a ir buscar a sua origem e fundamento à consciência: já não é o caráter lacunar e enigmático do seu conteúdo, mas é a sua existência mesma enquanto aparece que é consciente, quer dizer, a própria consciência enquanto tal.

Original

  1. Ma vie et la psychanalyse, trad. M. Bonaparte, Paris, NRF-Gallimard, coll. « Idées », 1950, p. 57; GW, xiv, p. 57.[↩]
  2. Introduction à la psychanalyse, trad. S. Jankélévitch, Paris, « Petite Bibliothèque Payot », 1978, p. 260; GW, xi, p. 288.[↩]
  3. Métapsychologie, op. cit., p. 76 ; GW, X, p. 271.[↩]
  4. Trad. A. Berman, Paris, PUF, p. 19 ; GW, xii, p. 79-80.[↩]
  5. Le gai savoir, op. cit., p. 79.[↩]

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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