Os três enormes livros da Phänomenologie der Intersubjetivität mostram como o solipsismo metodológico se tornou uma dificuldade insuperável para Husserl. A intencionalidade da consciência remete tudo para fora, e de tal modo que não se pode falar nem do interior nem do exterior, pois a consciência é sempre consciência de algo. No entanto, o solipsimo metodológico torna-se inevitável à medida que se tenta chegar ao outro sem abandonar a consciência em que é concebida a relação com o outro. Essa relação ó assegurada na consciência transcendental monocêntrica. A tentativa de Husserl se parece com uma aranha que cada vez mais vai se aprisionando na própria teia. Heidegger persiste nesse molde solipsista. A diferença com a filosofia da consciência está em que ele dramatiza o seu “solipsismo existencial”. No seu curso sobre fenomenologia da religião ele chama a atenção para essa diferença, ou melhor, ela ainda é concebida no modelo solipsista. Ele considera errôneo colocar-se o ter-se-a-si-mesmo radical com o solipsismo reflexivo, pois o ter-se-a-si mesmo não é um mero quietismo contemplador, mas a plena faticidade histórica (PrL, 1995, p. 255), cuja posição solipsista se torna em SZ solipsismo ontológico-existencial. O quietismo contemplador da consciência teórica (Bewusstsein) é substituído pela solidão incomunicável do clamor ou da voz da consciência do ser-aí, a qual se dá fora das regras da linguagem. Diz Heidegger: 0 clamor (Ruf) carece de comunicação (Verlautbarung). Ele não se liga primeiro à palavra, no entanto nada fica aqui obscuro e indeterminado. 0 discurso da consciência (Gewissen) se dá sempre ao modo do silêncio. Ele não perde nada em sensibilidade, mas o próprio ser-aí é conclamado ou chamado à discrição. A falta de formular em palavras do que no clamor é aclamado não se liga ao fenômeno da indeterminação de uma voz misteriosa, mas, antes, mostra que a compreensão do “aclamado ” (Gerufen) não pode estar na expectativa de comunicação ou algo que se assemelhe a isso (SZ, p. 273-274). Chamamos essa posição de solipsismo ontológico-existencial do ser-aí porque, mesmo tentando preservar a “relação com os outros”, o ser-aí é um singulare tantum, isto ó, a relação com os outros é concebida desde o ser-aí, ou seja, mesmo rejeitando uma posição objetivista da relação com os outros. Mas essa relação, semelhante á posição de Husserl, é pensada de modo monocêntrico. Nas palavras de Heidegger: A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo o próprio ser-aí (Die Charakteristik des Begeguens der Anderen orientiert sich so aber doch wieder am je eigenen Dasein). E ainda: o “com ” é uma determinação do ser-aí (Das “Mir” ist ein Dasei ns mässiges) SZ, p. 118.
(HEBECHE, Luiz. O escândalo de Cristo : ensaio sobre Heidegger e São Paulo. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005)