Harada (Estudo) – Teoria ingênua das ciências

[…] Para metafísicos como São Tomás de Aquino e Duns Scotus, a intuição do ser é uma cognição intelectual que garante que a metafísica tenha um assunto definido que possa ser conceituado com mais precisão.

Heidegger inicia “Tempo e Ser” [GA14] afirmando que seu pensamento também tem uma “matéria”. No entanto, ele difere de Aquino e Scotus nesse ponto em pelo menos dois aspectos. Primeiro, ele sustenta que seu pensamento tem duas matérias: ser e tempo. Voltarei a falar sobre a natureza dessas matérias na próxima seção. Em segundo lugar, a intuição minimamente conceitualizada do ser e do tempo no início do pensamento de Heidegger não é uma cognição intelectual, mas uma forma de consciência evocada e articulada por expressões poéticas do tipo “It is . . .” ou “There is . . .” em inglês (“Es gibt . . .” em alemão, “Il y a . . .” em francês). Vou listar alguns exemplos dados na série de anotações feitas durante o seminário em que “Tempo e Ser” foi originalmente apresentado:

É um vinhedo, queimado e preto com buracos cheios de aranhas.

É um vento sibilante que circula em torno de cabanas vazias.

Il y a une petite voiture abandonée dans le taillis, ou qui descend le sentier en courant, enrubannée. (Há uma pequena viatura abandonada nos bosques ou descendo o caminho, com fitas por toda parte).

Il y a une troupe de petits comédiens en costumes, aperçus sur la route à travers la lisière du bois. (Há uma trupe de atores, com fantasias, que você pode ver na estrada através da borda do bosque.)1 [28] Essas instâncias de linguagem poética não são meras declarações brandas de compromisso ontológico para Heidegger. Elas desempenham várias funções no início de sua investigação:

(1) Gramaticalmente, são sentenças sujeito-predicado, mas como seus sujeitos não designam entes (assim como o “It” em “It is raining” (Está chovendo) não designa um ente), as questões do pensamento não são automaticamente reificadas como entes especiais dos quais certas propriedades são predicadas.

(2) As afirmações poéticas revelam entes de diferentes tipos como interconectados: plantas (um vinhedo, um bosque), animais (aranhas), fenômenos naturais (vento), edifícios (cabanas), equipamentos (uma viatura, uma estrada), obras de arte (peças apresentadas por uma trupe de atores) e seres humanos (os atores, aqueles que moram ou moraram nas cabanas).

(3) As declarações revelam entes situados em um tempo que engloba o passado (o vinhedo que foi queimado, a viatura que foi abandonada ou colocada em movimento), o presente (o vento que está assobiando, a viatura que está descendo) e o futuro (para onde a viatura irá rolar, o que a trupe de atores fará em seguida).

(4) Uma sensação de estranheza semelhante à sentida por alguém que se pergunta por que existe algo em vez de nada é insinuada pelas afirmações poéticas, tornando legítimo considerar as afirmações como um chamado de atenção para o ser e a temporalidade per se dos entes revelados.2

  1. On Time and Being, pp. 39-40. The poets quoted are Georg Trakl and Arthur Rimbaud.[]
  2. Ibid., p. 40, where it is remarked that something “uncanny” is named in these “It is . . .” statements. This uncanniness in the face of the being and temporality of beings is distinct from the more negative Sartrean intuition of being, which is a visceral revulsion or “nausea” in the face of being per se.[]