O reinado do absolutismo do conceito unilateral da ciência está no fim. É o que nos vem demonstrando o avanço das ciências, que progridem não tanto pelo alargamento e quantificação de novos dados e novas descobertas, dentro de um determinado horizonte de pesquisa, mas pela destruição de suas pressuposições e seus conceitos fundamentais, através das crises de seus fundamentos, para abrir-se a um horizonte novo, mais profundo, mais vasto e mais originário. Assim, viemos assistindo a sucessivas quedas da monarquia do conceito racionalístico de ciência de modelo matemático e lógico, do conceito empirístico-positivista nos moldes da física e da biologia, do conceito materialista nos moldes da química, do conceito relativista nos moldes da historiologia etc. etc. A nova consciência científica hoje tem a tarefa principal de desmascarar essas superstições do dogmatismo que se infiltram nas ciências. Ela, a consciência científica nova, nessa tarefa de desmascaramento, não vai contra a cientificidade das ciências. Pelo contrário, em desmascarando a absolutização e hipostatização anticientíficas dos conceitos unilaterais da ciência, tenta abrir caminho à cientificidade mais humana e plena de um saber científico futuro, que se avia na medida em que, numa reflexão de fundo em direção à raiz de cada tipo de ciência, desencadeia um confronto e diálogo universal de todas as ciências mutuamente entre si.
Essa nova atitude científica da nova consciência, que começa a despertar por toda parte nas ciências, pode ser caracterizada mais ou menos da seguinte forma:
a) Não há um conceito de ciência fixo, parado; não há portanto uma forma fundamental de “cientificidade como tal”. A ciência vive em transformações, tanto no todo da sua forma como nas formas das suas particularidades. Entre aquele e estas se dá interação de influência mútua.
b) No progresso científico não há um crescimento unívoco e unitário do conhecimento, unilinear, sucessivo e evolutivo. Por isso, os critérios que decidem o que é conhecimento científico e o que não é devem ser examinados cada vez, na medida em que avançam as ciências, segundo o estilo de transformação assinalado no item a) acima.
c) Não há conceito de ciência aplicável sem mudança a todas as ciências particulares. Conceitos fundamentais, como experiência, fundamento, fundamentação, causa, prova, demonstração’, método etc. etc., têm um significado diverso nas diferentes ciências particulares ou nos diferentes grupos de ciências.
d) Como existe uma pluralidade de métodos de ciências particulares, assim também, dentro de uma e mesma ciência particular pode existir uma pluralidade de métodos, que coexistem numa ambiguidade complementar. Os métodos recebem seu aviamento a partir do toque de abordagem principal e, assim, dentro de uma mesma ciência particular, podem ocorrer duas ou mais abordagens, criando dois ou mais métodos. Estes, por sua vez, num confronto mútuo, mantendo cada qual a sua diferença, criam uma complementariedade, que não é ajuntamento nem síntese, não é substituição nem mistura, mas uma tensão que contém a espera de uma descoberta. Temos um exemplo disso na abordagem ondulatória e na abordagem corpuscular da luz na física. Assim, a manutenção da pluridimensionalidade é um característico da cientificidade das ciências e não a sua negação.
e) Cada ciência permanece em questão até a raiz de seus fundamentos, desde os mais principais e básicos. Mesmo as bases confirmadamente válidas e “definitivas”, comprovadas por várias ciências, podem ser subversadas como um caso parcial de um todo maior ou como ausência de uma diferenciação e aprofundamento mais rigorosos e radicais.
f) No questionamento dos fundamentos imanentes das ciências, a nova consciência científica sonda, ao mesmo tempo, sua decisão imanente. Sabe porém que as regras de jogo imanentes à própria ciência, provenientes dos fundamentos auto-constitutivos da decisão imanente das ciências, contêm também decisões e fundamentações sócio-históricas. Assim, ao acionarem-se como ciências, sabem-se partícipes das convicções operativas fundamentais de seu tempo e de sua sociedade. Por isso, não paira ou domina altaneira sobre o seu tempo nem sobre a sua sociedade. Não abstraem, mas assumem plenamente a prenhez e pregnância situacional sócio-históricas. Mas, ao mesmo tempo, evitam cair no dogmatismo do historicismo e do sociologismo. Por isso, a consciência científica não considera a ciência simplesmente como produto ou imitação de uma sociedade. Deixa assim de se determinar dentro da ingênua e irrefletida colocação “sujeito-objeto”, deixa tanto o objetivismo como o subjetivismo de lado, como um dogmatismo não científico.
g) A contraposição sujeito-objeto, em todas as suas manifestações, tais como saber-objeto, homem-realidade, teoria-práxis etc. etc., não é mais colocada ingênua, externa e materialmente, mas como circulação de mútua interação. A ciência não está diante, contra, em frente à vida, à realidade, mas está nela inserida. E a vida humana pré-científica não é autarquia, mas já implica comportamentos e modos do pensar científico.
À primeira vista, essa nova compreensão dinâmica das ciências parece dissolver toda a nitidez e clareza da cientificidade num fluxo, certamente dinâmico, mais diferenciado e rico, mas confuso, sem contorno e sem determinação, portanto a um relativismo, historicismo, a um vitalismo caótico, onde tudo, qualquer opinião, práxis ou tentativa de busca já é considerada ciência.
Na realidade, porém, não se trata de uma dissolução numa confusão e num caos relativista. Pelo contrário, trata-se de libertar as ciências da infiltração dos velhos e obsoletos ídolos do dogmatismo e tomá-las claras e distintas (Descartes), não conforme o totalitarismo de uma medida unilateral absolutizada, mas conforme a exigência da pluriformidade e pluridimensionalidade de uma mathesis universalis.
Essa clarificação pluridimensional das ciências começa a nos mostrar a estrutura interna das ciências e o seu relacionamento com a filosofia.