(…) A dualidade entre a coisa como algo específico e a coisa formaliter marca uma dualidade nas próprias aparições (Erscheinung), e não é algo que simplesmente nos aparece em um determinado estado de espírito ou no início de um “começo grego” especial. Por essa razão, a realidade anteriormente descrita sob o nome de “ferramenta quebrada (art4577)” (ou “espaço” ou “teoria”) não forma mais uma unidade simples em relação ao contexto retirado. A própria aparição se tornou dual.
Mas, talvez ainda mais perturbador, essa mesma dualidade já está operando no nível pré-teórico do próprio ser-ferramenta. Pois mesmo que o sistema do mundo tente se comportar como um império único e unificado, ele também existe em cada caso na forma de objetos distintos, como conchas, trombetas, vidros ou martelos, independentemente de eles estarem explicitamente presentes para nós ou não. De fato, até mesmo a ferramenta oculta é marcada pelos dois momentos de “algo específico” e “algo em absoluto”. O chão que sustenta nossos pés é pelo menos algo, mas também é um algo marcado por características específicas e limitadas: ele nos sustenta em vez de rir de nós ou nos irradiar com energias letais, quer percebamos isso ou não.
Em suma, a dualidade dentro da aparição não é um cisma ad hoc gerado apenas em raros momentos de investigação teórica ou de humor intenso. Em vez disso, os dois lados da coisa aparente servem apenas para objetivar um tipo de ente no qual já estamos imersos, duas metades de um mundo que existe antes de toda teoria. Isso também já está claro em 1919, quando os dois setores do reino invisível de Ereignis aparecem sob dois nomes distintos: “algo pré-mundano” (vor weltliches Etwas) e ‘algo carregado de mundo’ (welthaftes Etwas): “as funções de significado pré-mundanas e mundanas têm em si a característica essencial de expressar caracteres de acontecimento (Ereignischaraktere). . . … “1 A consequência disso para o presente livro é a seguinte. Tenho argumentado o tempo todo que a realidade, aos olhos de Heidegger, acaba sendo nada mais do que uma interação monótona entre Ereignis (ferramenta) e Vorgang (ferramenta quebrada). Mas agora acontece que Ereignis tem duas faces, e Vorgang tem duas faces. Isso é algo absolutamente novo, algo nunca mencionado antes, seja no presente livro ou em qualquer outro trabalho sobre Heidegger: seu termo “diferença ontológica” é ambivalente, pois é empregado simultaneamente para descrever duas distinções completamente separadas.
No que diz respeito a esse novo tema inesperado, tentarei mostrar apenas que ele é a fonte direta para o tema posterior de Heidegger “o Geviert”, que geralmente é visto como uma fuga arbitrária da poesia por parte do filósofo. Contra essa visão, sustentarei que das Geviert nada mais é do que o resultado lógico curto e grosso da filosofia de Heidegger sobre ferramenta e ferramenta quebrada. Até esse ponto, estarei apenas fazendo uma afirmação sobre as relações internas entre vários conceitos heideggerianos. Outra questão é se sua noção de realidade como estrutura quádrupla pode ser de alguma utilidade para nós neste ano e nos anos seguintes. Por enquanto, o importante é apenas ver que uma força alienígena de alguma forma se infiltrou no dualismo que, de outra forma, domina as obras de Heidegger; a ferramenta e a ferramenta quebrada são exatamente duas vezes mais complicadas do que pareciam ser. O domínio anteriormente ilimitado do eixo como/não como agora é atravessado por um poder de igual nível. Em vez de enfrentarmos nosso duplo repetitivo anterior, somos confrontados com o número quatro.
Uma história Zen tradicional fala de um noviço do templo que esperava alcançar a iluminação cortando um gato ao meio com uma espada. Ao testemunhar os preparativos para essa atrocidade, o monge chefe chamou e pediu ao recém-chegado que se explicasse.
“Estou cortando o gato em dois com uma espada”, foi a resposta do jovem.
Superando esse suposto paradoxo de dualidade e unidade, o monge rebateu com a seguinte observação: “É fácil cortar o gato em dois com uma espada. O que é difícil é cortar o gato em um com uma só espada”.
“Mas o que é ‘cortar o gato em um’?”
“O próprio gato.”
Ao ouvir essa resposta de seu mestre, o noviço alcançou a iluminação.
Como se quisesse superar o mestre zen nessa anedota, Heidegger corta o gato em um com duas espadas. A primeira arma, a inversão entre ferramenta e ferramenta quebrada, tem sido o foco principal deste livro desde o início. A segunda lâmina não é outra senão a diferença recém-descoberta entre a coisa considerada como algo em particular e como algo de fato.
- GA56-57:117[
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